Livia Rospantini Monteiro
RESUMO: O artigo visa apresentar reflexões acerca das possibilidades de transformações psíquicas a partir do impacto imagético da visibilidade das mulheres indígenas no poder político brasileiro. Para isso, será analisada a solenidade de posse do Ministério dos Povos Indígenas, que ocorreu de forma conjunta com o Ministério da Igualdade Racial. A cerimônia manifestou, na sede do Poder Executivo, ritos e tradições dos povos originários, dos quilombos e terreiros do Brasil. Considerando o complexo cultural brasileiro e a tentativa de apagamento histórico desses povos, o artigo discorre sobre o impacto simbólico do empossamento das mulheres indígenas como viabilidade de reimaginação da política e da ampliação da consciência individual e coletiva.
“Reflorestar mentes e aldear a política”. Envolto nesse lema em meio a maior mobilização nacional dos povos originários, durante o Acampamento Terra Livre (ATL) 2022, o então candidato à presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, comprometeu-se com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, na presença de cerca de 6 mil pessoas que representavam a diversidade étnica de mais de 300 etnias, das 305 existentes no Brasil (IBGE, 2011) .
A promessa aconteceu no momento próximo em que a imprensa mundial pautava a urgência climática decorrente dos altos índices de desmatamento de florestas e os povos indígenas foram apontados, em relatório da Organização das Nações Unidas (ONU, 2021), como os melhores guardiões das florestas da América Latina e do Caribe . Na contramão do que propunham os estudos mundiais, o então presidente Jair Bolsonaro promovia, por meio da flexibilização de seus dispositivos legais, a maior exploração econômica dos Territórios Indígenas (TIs) dos últimos tempos. Dessa forma, o Brasil, um dos maiores repositórios da biodiversidade ambiental, tornar-se-ia também um dos grandes focos do desmatamento global.
Com a mudança do governo e a criação do Ministério dos Povos Indígenas, formalizada por meio do Decreto nº 11.355 de 1º janeiro de 2023, Sônia Guajajara, deputada federal eleita por São Paulo e liderança indígena internacionalmente reconhecida por sua luta em defesa dos povos originários e do meio ambiente, foi anunciada ministra. Dez dias depois, em cerimônia realizada no Palácio do Planalto, o governo consolidaria, com o empossamento de Sônia, o ministério que representa o “Brasil do Cocar” (XAKRIABÁ, 2023).
A solenidade de posse do Ministério dos Povos Indígenas, realizada por meio de uma cerimônia conjunta com o Ministério da Igualdade Racial, manifestou, na sede do Poder Executivo, a força ancestral das tradições dos povos dos territórios, quilombos e terreiros do Brasil, parte estrutural do complexo cultural brasileiro, marcada pela tentativa de apagamento histórico no processo de colonização e atuante pela lógica colonial vigente no poder mundial capitalista (QUIJANO, 2005). Como complexo cultural, entende-se que:
Ele se estrutura, geralmente, a partir de vivências coletivas traumáticas relacionadas a temas históricos como: imigração, escravidão, colonização, conflitos entre estados e nações, relações étnicas e de gênero, religião, demarcação territorial, entre outros. Os diversos complexos locais podem estar presos em um mega complexo cultural (SILVA; SERBENA, 2021, p. 169).
O Salão Nobre do Palácio do Planalto, frequentado habitualmente por pessoas usando ternos e vestidos de cores sóbrias, foi tomado pelas multicores das vestimentas indígenas e africanas das autoridades e convidados da posse. Pinturas corporais, acessórios de miçangas, turbantes e cocares de penas coloridas faziam parte das indumentárias dos presentes. Toques de tambores e maracás, cantos, rezas e danças anunciaram que junto à Anielle Franco e Sônia Guajajara, tomava posse, na cena política, a ancestralidade negra e indígena do Brasil.
Se “o futuro é ancestral” (KRENAK, 2022) e a individuação é coletiva, este artigo propõe um convite a experienciar a aproximação da teoria junguiana aos saberes ancestrais resguardados pelos povos originários, manifestos na solenidade de posse do Ministério dos Povos Indígenas, na sede do Poder Executivo do Brasil.
Jung ressalta em sua obra a importância do resgate dos ritos simbólicos como experiência primordial da humanidade, capaz de auxiliar no desenvolvimento psíquico do processo de individuação. Segundo o autor, “A individuação, no entanto, significa precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor rendimento social” (JUNG, 2019, p. 267).
Se no contexto europeu, no início do século XX, Jung discorria sobre os ritos como atos de um passado longínquo realizados pelos homens “primitivos”, é importante frisar que, na atualidade, especialmente na América Latina, o uso do termo é inconcebível e que a filosofia dos povos originários segue pulsante, resistente e presente, reflorestando mentes e reencantando espaços. Sobre o resgate da experiência ritualística, negligenciada por uma lógica dominante racionalista, o autor propõe que:
Se esta tradução for bem-sucedida, o mundo tal qual o concebemos será unido de novo à experiência primordial da humanidade através do símbolo de uma cosmovisão; o homem histórico e universal estenderá a mão ao homem individual recém-nascido. Será uma experiência que se aproximará daquela do primitivo que se une ao seu ancestral-totem por meio de uma refeição ritual.
(...) a psicologia analítica é uma reação contra uma racionalização exagerada da consciência que, na preocupação de produzir processos orientados, isola-se da natureza e, assim, priva o homem de sua história natural e o transpõe para um presente limitado racionalmente que consiste em um curto espaço de tempo situado entre o nascimento e a morte (...) A qualidade de eternidade, que é tão característica da vida do primitivo, falta inteiramente em nossas vidas. Vivemos protegidos por nossa muralha racionalista contra a eternidade da natureza. A psicologia analítica procura justamente romper essas muralhas ao desencavar de novo as imagens fantasiosas do inconsciente que a nossa mente racionalista havia rejeitado (JUNG, 2019, p. 738 - 739).
Ao reivindicar respeito pelos direitos dos povos originários, a ministra Sônia Guajajara e a deputada federal Célia Xakriabá buscam frequentemente, por meio de pronunciamentos públicos, uma reparação histórica decolonial: “antes de existir o Brasil da coroa, existe o Brasil do cocar”. Nesse sentido, é possível reimaginar o país a partir da representatividade política de pessoas que resistem ao apagamento histórico e, ainda hoje, lutam pela demarcação de seus territórios? No livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, o pensador Ailton Krenak, aborda essas formas de resistência:
Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar do século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade. Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas “pessoas coletivas”, células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo (KRENAK, 2020, p.28).
Ao descrever a cena que envolve o empossamento da ministra Sônia Guajajara, serão abordadas perspectivas de pensadores indígenas, decoloniais e do pronunciamento das próprias lideranças durante o ritual de posse em dialética com a teoria junguiana. Neste contexto, o presente trabalho se organizará a partir do detalhamento dos elementos que compuseram o cenário ritualístico da cerimônia de posse com representações específicas dos povos indígenas, considerando os elementos conjuntos da representatividade afro-brasileira. Na sequência, o artigo trabalhará as possibilidades de integração psíquica a partir da subjetividade política, da ampliação da consciência coletiva e da reimaginação do Brasil.
O Brasil do Cocar encanta o Palácio do Planalto
Orixá detentor da justiça na mitologia iorubá, Xangô foi evocado por um cortejo que antecedia a descida das ministras Sônia Guajajara e Anielle Franco na rampa do salão nobre do Palácio do Planalto. Ao som de toques de tambores do grupo Afoxé Ogum Pá, que tocava o Alujá de Xangô, toque específico para o orixá, o cortejo abria o caminho com a yalorixá, Mãe Dora de Oyá, à frente de candomblecistas dançando e cantando, todos com vestimentas específicas do culto afro-religioso.
Na sequência, o presidente Lula e a primeira-dama Janja conduziam as duas ministras que ergueram as mãos dadas, em símbolo de luta e resistência. Anielle usava um vestido de tecido africano colorido; Sônia, um cocar imponente na cabeça e um instrumento indígena chamado maracá na mão direita. Em comum, as vestimentas das ministras possuíam as cores da bandeira do Brasil, este país que surge de um violento processo de colonização, marcado pela escravidão, pelo genocídio e etnocídio dos povos negros e indígenas, e estruturado socialmente a partir desses elementos.
Nessas condições, exacerba-se o distanciamento social entre classes dominantes e as subordinadas, e entre as oprimidas, agravando as oposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico-cultural e da unidade nacional, tenções dissociativas de caráter traumático. Em consequência, as elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois luso-brasileiras e, afinal, brasileiras, viveram sempre e ainda vivem sob o pavor pânico do alçamento das classes oprimidas (RIBEIRO, 2013).
Alicerçada pelo deus iorubá Xangô, a chegada de Anielle Franco e Sônia Guajajara ao primeiro escalão do governo para representarem as causas dos povos negros e indígenas, simboliza a justiça para um Brasil que se conscientiza politicamente das profundas feridas coloniais do complexo cultural brasileiro. O assassinato de Marielle Franco, irmã de Anielle, e de milhares de pessoas negras e indígenas é um sintoma de um país adoecido por sua sombra colonial, sendo que o fortalecimento das narrativas mito-poéticas africanas e indígenas na cena política surge como uma possibilidade de encantamento desse espaço enrijecido, de transformação psíquica e da ampliação da consciência individual e coletiva.
O hino nacional, emitido tradicionalmente na abertura das solenidades oficiais do governo, teve a primeira parte interpretado na língua indígena Tikuna, pela cantora amazonense Djuena Tikuna. Em seguida, a carioca Marina Íris, cantora de samba, interpretou a segunda parte do hino em português. Tikuna é uma das 274 línguas indígenas no país, onde vivem 817.963 mil pessoas indígenas de 305 diferentes etnias, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010). Apesar da ministra dos Povos Indígenas pertencer ao povo guajajara, a diversidade étnica foi representada na cerimônia de posse.
A deputada federal Célia Xakriabá foi chamada para a apresentação da ministra e iniciou seu pronunciamento entoando um canto e balançando o maracá: “A luta pela mãe Terra é a mãe de todas as lutas”, disse, ao se referir a uma fala da própria Sônia. A partir de então, o pronunciamento da deputada, decorreu de forma poética denunciando a violência, a destruição e a desconexão do homem branco e da política vigente com a natureza.
A mãe do Brasil é indígena. Nós povos indígenas sofremos o primeiro golpe em 1500. Somos povos sementes, fermento da luta, da continuidade da vida e da terra. (...) Sabemos que a saída para as mudanças climáticas é a demarcação dos territórios indígenas. Essa luta travada é ainda mais forte porque agora nós temos um Ministério dos Povos Indígenas, mas esse ministério pode ser chamado de Ministério Ancestral. A mão que tentou golpear a democracia, não golpeia nossa existência. A lama que matou vários rios e corroeu várias montanhas e a nossa mata atlântica não soterrou a nossa esperança. O fogo que queimou Galdino aqui em Brasília, não queimou o nosso canto. A motoserra e a caneta que derruba a Amazônia, não derrubou a nossa espiritualidade. O fogo que queimou o Pantanal e o Pampa, não queimou o brotar das mulheres indígenas. Nasceram e continuarão nascendo muitas outras mulheres bioma, as guerreiras da ancestralidade (XAKRIABÁ, 2023).
O reconhecimento da memória e da ancestralidade é fundamental na cosmovisão indígena, pois é a partir da relação com os mais velhos e da tradição da oralidade que os saberes são transmitidos e delegados de geração em geração. O xamã yanomami Davi Kopenawa, liderança indígena presente e reverenciada na cerimônia de posse, aborda essa ligação:
Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm dos nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória é longa e forte (KOPENAWA, 2010, p.75).
Após a apresentação de Célia Xakriabá e de cantarem juntas em momento de celebração com os representantes indígenas presentes, Sônia Guajajara relatou, durante seu pronunciamento oficial, que assumir a missão de porta-voz dos povos originários foi um compromisso ancestral passado por sua tia, parteira e liderança do território Araribóia, no Maranhão (MA), quando tinha apenas 17 anos:
Quando eu tinha 17 anos fui chamada pela minha tia Maria para conversar. Tia Maria é parteira e uma respeitada liderança espiritual. (...) chegando lá a encontrei com dois presentes: um colar e um maracá. Ela então me olhou e disse com aquela voz serena: “ô minha fia, quero te entregar esses presentes que são símbolos de liderança e eu passo a você o poder da palavra. Você vai ter o teu dom da comunicação, todo mundo vai te ouvir. Você vai crescer e tudo o que você tiver para falar, não hesite, porque todo mundo vai parar para te escutar. Esse maracá vai ecoar e você será a porta voz do nosso povo”. Por isso eu trago essa pequena memória para lembrar que eu não estou aqui sozinha, eu estou aqui com a força da nossa ancestralidade. (...). Assumo com muita honra e coragem este ousado e inovador desafio. Uma missão já anunciada há anos pela minha tia Maria (GUAJAJARA, 2023).
A ministra destacou ainda que a ligação com a ancestralidade não se refere ao saudosismo de um passado atrasado, mas a uma força transversal atuante ligada ao presente e ao futuro, traçando a qualidade da eternidade: passado, presente e futuro. Dessa forma é possível pensar, em termos de desenvolvimento psíquico, na união dos opostos como fator determinante para a ampliação da consciência.
A existência dos povos indígenas do Brasil é cercada por uma leitura extremamente distorcida da realidade: ou nos romantizam ou nos demonizam. Nós não somos o que, infelizmente, muitos livros de história ainda costumam retratar. Se por um lado é verdade que muitos de nós resguardam modos de vida que estão no imaginário da população brasileira, por outro é importante saberem que nós existimos de muitas e diferentes formas. Estamos nas cidades, nas aldeias, nas florestas, exercendo os mais diversos ofícios que vocês possam imaginar. Vivemos no mesmo tempo e espaço que qualquer um de vocês. Somos contemporâneos desse presente e vamos construir o Brasil do futuro, porque o futuro do planeta é ancestral (GUAJAJARA, 2023).
No encerramento do discurso, Sônia Guajajara pediu que o presidente Lula recebesse um cocar, simbolizando, com isso, o comprometimento do governo com as causas indígenas. Em seguida, decorreu-se a apresentação ritual da dança Ema, do Povo Terena, realizada ao som de pifes, tambores e bastões, que ergueu Sônia Guajajara à frente do público e das autoridades presentes, em reconhecimento à representatividade dos povos originários do Brasil.
Naine Terena de Jesus registra que, originalmente, a dança é formada por dois grupos chefiados por dois caciques que dançam em filas paralelas. “O grupo que resistisse por mais tempo seria o vencedor, sendo seu cacique carregado em triunfo ao redor da aldeia por todos os que tomaram parte da dança”. Além do cacique do grupo vencedor, engue-se também “indivíduos que levaram contribuição importante para a comunidade, ou ainda, que podem trazer elos políticos e sociais” (JESUS, 2007, p. 70).
Para compreender o próprio aprisionamento na consciência cultural do homem branco, Jung ultrapassa as fronteiras dos consultórios e busca o conhecimento dos territórios. Foi a partir de uma viagem pela América e do contato com os “índios pueblos”, que o fundador da psicologia analítica reconheceu a sombra da civilização e o impacto psíquico da unilateralidade do racionalismo exacerbado em detrimento da conexão e do pertencimento à natureza.
Compreendi, então, sobre o que repousava a “dignidade”, a certeza serena do indivíduo isolado: era um filho do sol, sua vida tinha um sentido cosmológico: não assistia ele a seu pai – que conversava com toda vida – em seu nascente e poente cotidianos? Se compararmos a isso nossa autojustificação, ou o sentido que a razão empresta à nossa vida, não podemos deixar de ficar impressionados com a nossa miséria. Precisamos sorrir, ainda que por puro ciúme, da ingenuidade dos índios e nos vangloriarmos de nossa inteligência, a fim de não descobrirmos o quanto nos empobrecemos e degeneramos (JUNG, 2019, p. 253,254).
A solenidade de posse do Ministério dos Povos Indígenas foi realizada de forma conjunta com o Ministério da Igualdade Racial por medida de segurança, devido aos atos terroristas do dia 8 de janeiro promovido por grupos extremistas apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, que depredaram os prédios do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Palácio do Planalto. A partir da magnitude simbólica do evento inédito na cena política do Brasil, o próximo tópico deste trabalho abordará as possibilidades de transformações psíquicas e da reimaginação da política e do país como parte do complexo cultural, do inconsciente coletivo e da consciência coletiva dos brasileiros.
Transformações psíquicas e reimaginação da política
O primeiro indígena a ocupar uma cadeira no parlamento brasileiro foi o cacique xavante Mário Juruna, eleito pelo Rio de Janeiro para o mandato de 1983 a 1987. Após quase quarenta anos, Joênia Wapichana, atualmente presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), foi a primeira mulher indígena eleita na esfera do poder legislativo, como deputada federal pelo estado de Roraima, no mandato 2019 a 2023. Apesar da multiplicidade de formas de vida dos povos originários, é possível admitir, a partir da literatura indígena e das próprias bandeiras de luta travadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a dicotomia entre o sistema de poder político capitalista e os sistemas que prezam pela preservação ambiental e cultural dos povos tradicionais. Sobre esta questão, Ailton Krenak dispõe:
É uma distopia: em vez de imaginar mundos, a gente o consome. Depois que comermos a Terra, vamos comer a Lua, Marte e os outros planetas. A mesma dificuldade que muita gente tem de entender que a Terra é um organismo vivo, eu tenho de entender que o capitalismo é um ente com o qual podemos tratar. Ele não é um ente, mas um fenômeno que afeta a vida e o estado mental de pessoas no planeta inteiro – não vejo como dialogar com isso (KRENAK, 2020).
Se o grupo até recentemente não integrava o cenário político brasileiro, a cerimônia de posse da ministra Sônia Guajajara evidenciou que os povos originários chegaram no governo evocando, através de ritos, cantos, toques, vestimentas, assessórios, pinturas corporais e da própria oralidade, imagens novas nesse espaço. A presença de mulheres indígenas na sede do poder executivo e no parlamento brasileiro constitui símbolos que expressam imagens do inconsciente coletivo brasileiro. Hillman (2018) define que “Um símbolo carrega em si pelo menos uma ideia principal que está expressa em uma imagem (...) Ambos, imagem e ideia, têm em comum alguma coisa da experiência humana que é durável através do tempo”.
Ao vincular psicologia profunda e política, Andrew Samuels determina que indivíduo e nação estão interligados e, portanto, “nenhum dos lados da divisão privado/público pode florescer sem atenção ao outro lado” (SAMUELS, 1995). O autor recorre a Jung para pensar o conceito de função transcendente também no campo da política:
Foi Jung que descobriu a propriedade crucial da imagética de olhar em duas ou mais direções ao mesmo tempo. Em 1916, ele denominou esta propriedade ‘a função transcendente’, significando que aparentes opostos podiam ser ligados por imagens, desde que estas imagens transcendentes fossem entendidas simbolicamente (...) De acordo com Jung, a unilateralidade de muitas atitudes conscientes podia ser transcendida por novos produtos psíquicos gerados do inconsciente. Esta ideia, denominada de ‘compensação’, significava que os opostos podiam dialogar e envolver-se em influência mútua (SAMUELS, 1995, p. 85).
A partir do impacto imagético da cerimônia de posse do Ministério dos Povos Indígenas é possível admitir que a representatividade das mulheres indígenas nesse espaço, majoritariamente dominado por homens brancos, constitui, não apenas o lugar de fala na defesa pelos direitos de seus povos, mas a possibilidade de transformação na imagem da política brasileira. O enriquecimento simbólico desse fato histórico pode trazer à tona conteúdos da sombra coletiva do Brasil capazes de, em sendo elaborados, despotencializarem as projeções sombrias sobre os povos originários. Através dessa possível reinvenção da política, o lema “reflorestar mentes” pode ser entendido também como ampliação da consciência individual e coletiva do Brasil.
É importante considerar que, apesar da mudança de governo e da criação do Ministério, a representatividade feminina ainda é tímida e no caso das mulheres indígenas, este é um número ainda menor. As pautas conservadoras do Congresso Nacional e STF que abarcam a flexibilização da demarcação de terras indígenas, seguem ameaçando fortemente a vida e formas de existência dos povos originários. Por outro lado, segundo pesquisa realizada pela Confederação Nacional do transporte (CNT) em parceria com o Instituto MDA, a demarcação das terras indígenas é a pauta mais aprovada do governo, o que mostra que muitos brasileiros já se conscientizaram da importância do tema .
Conclusão
Ao traçar uma retrospectiva recente do movimento dos povos indígenas a partir das mobilizações em Brasília até a cerimônia de posse da ministra Sônia Guajajara, é possível concluir que as mulheres indígenas chegam à cena política ancoradas em seus próprios ritos e tradições.
A apreciação simbólica da solenidade permite refletir sobre a reimaginação da cena política, até então delineada por uma formalidade ritual de poucas cores e sons. A manifestação de uma nova imagem no espaço político abre a possiblidade de integração psíquica e ampliação da consciência.
O objetivo da pesquisa não é, porém, debruçar-se em um romantismo exacerbado e ignorar o abismo que ainda, no atual contexto político, encontram-se as pautas ambientais, os direitos dos povos originários e das mulheres. Este trabalho busca abrir caminhos, no campo da psicologia analítica, para as ampliações simbólicas e reflexões sobre as possibilidades de desenvolvimento psíquico e reimaginação sociopolítica a partir dessa nova cena que surge, ainda que timidamente, com a representatividade das mulheres indígenas na política.
Os conteúdos narrados promoveram, de maneira mais sistematizada, uma imersão nos saberes indígenas e na teoria junguiana traçando uma relação com a história do Brasil e o momento político atual, através de movimentos psíquicos e manifestações sociopolíticas.
Referências
BRASIL de Fato. Demarcação de Terras Indígenas é a política do governo Lula mais aprovada entre os brasileiros. [s.d]. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/05/18/demarcacao-de-terras-indigenas-e-a-politica-do-governo-lula-mais-aprovada-entre-os-brasileiros. Acesso em: 28 de julho de 2023.
GUAJAJARA, S. Cerimônia de posse do Ministério dos Povos Indígenas e do Ministério da Igualdade Racial. 2023. TV Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_pGXliCQKVQ . Acesso em: 12 de julho de 2023.
HILLMAN, J. Uma investigação sobre a imagem. Ed. Vozes, 2018.
IBGE Educa. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/criancas/brasil/nosso-povo/20507-indigenas.html. Acesso em: 28 de julho de 2023.
JESUS, N. T. Kohixoti-kipáe – A dança da ema – Memória, resistência e cotidiano Terena. 2017. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/3753/1/2007_NaineTerenadeJesus.PDF . Acesso: em 12 de julho de 2023.
JUNG, C.G. A natureza da psique, Obra Completa 8/2. Ed. Vozes, 2013
______. O eu e o inconsciente, Obra Completa 7/2. Ed. Vozes, 2015.
______. Memórias, sonhos, reflexões, Coleção Clássicos de Ouro, Ed. Nova Fronteira, 2019.
KOPENAWA, D. A queda do céu. Ed. Companhia das letras, 2010.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo, Companhia das Letras, 2020.
______. A vida não é útil, Companhia das Letras, 2020.
QUIJANO, A. Colonialidade de poder e classificação social. In: LANDER, E (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. CLACSO, Buenos Aires, Argentina. 2005.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, Ed. Global, 2013.
SAMUELS, Andrew. A psique política. Ed. Imago Editora Ltda, 1995.
SILVA, C. E.; SERBENA, C. A. A teoria dos complexos culturais: uma perspectiva junguiana do social. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, Londrina, v.12, n.1, p. 158-182, abr. 2021.
XAKRIABÁ, C. Cerimônia de posse do Ministério dos Povos Indígenas e do Ministério da Igualdade Racial. 2023. TV Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_pGXliCQKVQ . Acesso em: 12 de julho de 2023.
Comments