As redes sociais e o labirinto
- Cejaa
- 2 de mai.
- 10 min de leitura
Keila Cristina Abreu do Vale (1)
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo traçar um paralelo entre o labirinto mítico do Minotauro e as redes sociais modernas, que aprisionam as pessoas e, de alguma forma, ceifam seu tempo de vida e sua capacidade de interação, deixando-as em um estado de inconsciência. A partir da comparação com o mito do labirinto, com ênfase na empreitada a que se lançou o herói Teseu, que derrotou o Minotauro, com o auxílio da princesa Ariadne, podemos vislumbrar alguma luz dentro da obscuridade dos corredores dos labirintos modernos.
A mitologia grega narra histórias fabulosas sobre os deuses olímpicos e sobre as façanhas e tragédias dos heróis. De acordo com Carl Gustav Jung, o estudo da mitologia nos fornece subsídios para o entendimento da psique em suas dinâmicas inconscientes, dada a forma arquetípica dos mitos:
“O que podemos dizer sobre as imagens míticas é, em primeiro lugar, que o processo físico penetrou na psique claramente sob esta forma fantástica e distorcida e aí se conservou, de sorte que o inconsciente ainda hoje reproduz imagens semelhantes.” (JUNG, 2014, §328)
A história do labirinto de Creta, construído por Dédalo, a mando do rei Minos, é um dos mitos mais interessantes e os símbolos que apresenta servem de referência ao fenômeno das redes sociais modernas, prodígios da arquitetura social digital, criadas com o mesmo fim e, quiçá, pelos mesmos motivos.
Tal narrativa tem início quando Minos, filho de Zeus, querendo assumir o trono de Creta, pede a Poseidon que faça surgir um touro do mar, a fim de impressionar o povo,
a quem havia prometido tal proeza, que, tornada real, seria suficiente para garantir-lhe o trono. A Poseidon Minos prometeu sacrificar o animal tão logo fosse coroado rei. Poseidon então criou um magnífico e belíssimo touro branco, que emergiu das águas do mar e subiu ao céu, impressionando o povo cretense. Isso fez de Minos o rei de Creta (FERRY, 2012).
Uma vez coroado, Minos, impressionado pela beleza do touro, decidiu não sacrificar o animal a Poseidon, servindo-se de outro animal para o sacrifício. O deus, ao verificar ter sido traído por Minos, ficou enfurecido e, com a finalidade de vingança, jogou um feitiço sobre a esposa de Minos, a rainha Pasífae, fazendo-a apaixonar-se pelo touro branco.
Tomada pela paixão, Pasífae solicitou a Dédalo que a ajudasse na empreitada de conquistar o touro. O famoso arquiteto criou uma vaca de madeira, dentro da qual Pasífae se escondeu e, assim camuflada, conseguiu seduzir o touro. Do amor entre a rainha e o touro foi gerada uma criança, de nome Astérios, que nasceu com corpo humano e cabeça de touro. Diante daquela monstruosidade e seguindo a orientação de oráculos (FERRY, 2012), o rei Minos ordenou a Dédalo que construísse um labirinto no qual Astérios seria confinado.
Algum tempo depois, um dos filhos de Minos, Androgeu, foi a Atenas participar dos jogos. O rei de Atenas, Egeu, enviou o rapaz para enfrentar o touro de maratona, o que acarretou a morte do filho de Minos. Por esse motivo, Minos declarou guerra a Atenas. Sua sanha de vingança, porém, foi mitigada por um acordo, segundo o qual quatorze jovens atenienses, sendo sete moças e sete rapazes, seriam enviados anualmente a Creta como tributos, a fim de servir de sacrifício ao Minotauro (J. BRANDÃO, 1987). Assim foi feito por duas vezes. Na terceira vez em que os quatorze jovens foram enviados, Teseu, filho de Egeu, ofereceu-se para acompanhá-los, com o escopo de enfrentar e matar o Minotauro, dando fim aos sacrifícios.
Quando Teseu chegou a Creta, Ariadne, filha do rei Minos, caiu de amores pelo herói. Ariadne sabia que, ainda que Teseu conseguisse matar o Minotauro, pereceria dentro do labirinto, pois este foi construído de tal maneira que nem mesmo Dédalo, que o idealizou e construiu, seria capaz de encontrar o caminho de volta. Assim, Ariadne pediu a Dédalo que a ajudasse no intento de prestar auxílio a Teseu, salvando-o da morte certa. Dédalo atendeu ao apelo de Ariadne, a quem forneceu um novelo de linha .
Seguindo as orientações do arquiteto, Ariadne explicou a Teseu como prender o fio à porta de entrada do labirinto e ir desenrolando o fio sem deixar cair o novelo para que, após matar o Minotauro, pudesse encontrar o caminho de saída. E assim se fez, seguindo o que Ariadne ensinou, Teseu conseguiu matar o monstro e sair do labirinto.
O símbolo mais importante dessa história é o próprio labirinto. Observe que o recinto foi construído no subsolo dos jardins do palácio de Minos. Foi planejado e construído de forma tão engenhosa que nem mesmo Dédalo seria capaz de encontrar a saída. Desse modo, a vitória de Teseu sobre Minotauro de nada valeria se, após derrotar o monstro, o herói não conseguisse encontrar a saída.
O dicionário de símbolos (2) destaca que o labirinto pode ser associado à caverna e à mandala, tendo em vista que atingir o centro do labirinto, em muitas culturas, é um ato de natureza iniciática, dado que somente pessoas que têm um dom podem alcançar esse objetivo. Também já foi utilizado como sistema de defesa ou de proteção, dado que algo precioso ou sagrado seria guardado no centro do labirinto, que é reservado ao iniciado:
“O centro que o labirinto protege está reservado ao iniciado, àquele que, através das provas da iniciação (os desvios do labirinto), se terá mostrado digno de chegar à revelação misteriosa. Uma vez atingido o centro, o iniciado está como que consagrado; introduzido nos mistérios, fica ligado pelo segredo.”
E citando Marcel Brion (apud Chevalier e Gheerbrant), ressalta que:
“O labirinto também conduz o homem ao interior de si mesmo, a uma espécie de santuário interior e escondido, no qual reside o mais misterioso da pessoa humana. Pensa-se aqui em mens, templo do Espírito Santo na alma em estado de graça, ou ainda nas profundezas do inconsciente. Um e outro só podem ser atingidos pela consciência depois de longos desvios ou de uma intensa concentração, até esta intuição final em que tudo se simplifica por uma espécie de iluminação. É ali, nessa cripta, que se reencontra a unidade perdida do ser, que se dispersara na multidão dos desejos. A chegada ao centro do labirinto, como no fim de uma iniciação, introduz o iniciado numa cela invisível, que os artistas dos labirintos sempre deixaram envolta em mistério, ou melhor, que cada um podia imaginar segundo sua própria intuição ou afinidades pessoais. (...) A transformação do eu, que se opera no centro do labirinto e que se afirmará à luz do dia no fim da viagem de retorno, no término dessa passagem das trevas à luz, marcará ‘a vitória do espiritual sobre o material e, ao mesmo tempo, do eterno sobre o perecível, da inteligência sobre o instinto, do saber sobre a violência cega.’”
O labirinto de Creta, construído no subsolo dos jardins do palácio, com corredores confusos e escuros, representa o inconsciente, o lado obscuro da psique, o que é desconhecido e incognoscível. Uma vez dentro do labirinto, os jovens tributos encontrariam a morte pelas mãos do Minotauro ou pela perdição. Não havia chance de escapar. E Teseu, munido de coragem, intenta enfrentar o monstro, para dar fim ao acordo de sacrifícios, porém sem chance de retorno.
O Minotauro, o touro, por sua vez, representa a violência, a energia masculina, o lado primitivo, a força bruta. Segundo o dicionário de símbolos,
“O touro evoca a ideia de irresistível força e arrebatamento. Evoca o ‘macho impetuoso, assim como o terrível Minotauro, guardião do labirinto. (...) Na tradição grega, os touros indomados simbolizavam o desencadeamento sem freios da violência. São animais consagrados a Poseidon, deus dos oceanos e das tempestades, a Dionísio, deus da virilidade fecunda. ‘Animal altivo’, diz Hesíodo, ‘de ardor indomável’ (Théogonia, 832). (...) O touro, ou, mais geralmente, o bovino, representa os deuses celestes nas religiões indo- mediterrâneas, devido à fecundidade infatigável e anárquica de Urano, deus do Céu, semelhante à sua. (...) Ligada ao ardor cósmico, é o calor que anima todo ser vivo. O touro de Indra é a força calorosa e fertilizante. Está ligada ao complexo simbolismo da fecundidade: chifre, Céu, água, raio, chuva etc. (...) Para numerosos povos turco-tártaros, o touro, encarnação das forças ctonianas, sustenta o peso da Terra sobre suas costas ou seus chifres (HARA). (...) No simbolismo analítico de Jung, o sacrifício do touro ‘representa o desejo de uma vida do espírito que permitiria ao homem triunfar sobre as suas paixões animais primitivas e que, após uma cerimônia de iniciação, lhe daria a paz. O touro é a força descontrolada sobre a qual uma pessoa evoluída tende a exercer o domínio.”
Segundo Junito Brandão (1987), o Minotauro representa a dominação perversa do rei Minos, a demonstração do poder do rei. Diante de tantos significados para o símbolo do touro, não se pode perder de vista que o capitalismo moderno, que encerra em si mesmo a ganância desenfreada e a exploração extrema da mão de obra, inclusive com trabalho em condições análogas à escravidão, tem como símbolo o touro de bronze, a estátua de um touro em posição de ataque, com dimensões idênticas às de um animal real,
instalada em frente ao prédio da Bolsa de Valores em Wall Street, Nova York City, local que representa o mercado financeiro que influencia as bolsas de valores do mundo inteiro. Os significados de violência e agressividade que emanam da imagem do touro combinam com as forças capitalistas que movem o mundo moderno.
A seu turno, as redes sociais, que foram implantadas no mundo como uma ferramenta de interação e entretenimento no mundo globalizado, com o objetivo de aproximar as pessoas, que tinham a oportunidade de compartilhar com “amigos” e “seguidores”, sua rotina, seus gostos e opiniões, passaram a servir como instrumento de vendas de todo tipo de produtos e serviços, inclusive de ideologias e filosofias. Longe de funcionarem de modo orgânico e natural, as redes sociais são manipuladas. Cada pessoa recebe estímulos de textos e imagens de acordo com seus interesses e os interesses do grupo em que está inserida, no intuito de consumir o que lhe é mostrado.
Tudo isso funciona de acordo com os algoritmos em torno dos quais as redes sociais são idealizadas.
As manipulações de dados, de pensamentos e de desejos foram fartamente explicadas no documentário “O dilema das redes”, produzido pela Netflix3. O trabalho nos mostra, de forma inquietante, todos os recursos que foram empregados no intuito de proporcionar às empresas de tecnologia muito dinheiro, a partir das redes sociais.
Os engenheiros e designers que fazem parte do documentário explicam as artimanhas utilizadas nas redes sociais para prender a atenção dos usuários, desde as notificações coloridas e ruidosas, as marcações em fotos e publicações, até mesmo as reticências que aparecem enquanto o interlocutor digita uma mensagem, tudo com a finalidade de prender a atenção do usuário. Explicam que as redes sociais funcionam sobre três pilares: engajamento, que é o que faz as pessoas ficarem presas às redes sociais, através de vídeos e publicações que são sugeridas por algoritmos e são forjados a partir dos interesses dos próprios usuários; crescimento, que é modo mediante o qual a rede social cresce e se alimenta pelo recurso de compartilhamento, em que um usuário repassa a outro usuário as publicações que reputa interessantes, fazendo com que outra pessoa também fique presa a esses conteúdos; e, por fim, a publicidade, que é patrocinada por empresas.
Nesse último ponto, a publicidade, os engenheiros ressaltam que os usuários não desembolsam nenhum valor para utilizar os recursos das redes. Porém, enquanto utilizam tais serviços, os usuários disponibilizam algo precioso, além de seu tempo de vida (ainda mais precioso): os usuários disponibilizam às redes seus interesses, o que é vendido aos patrocinadores. As redes, a partir de recursos de manipulação de dados, sugerem aos usuários novos conteúdos e produtos, os quais estão de acordo com seus interesses. E, aos poucos, vão criando desejos e interesses novos, tendo em vista que os algoritmos são submetidos às máquinas que trabalham para as redes, as quais, dia após dia, vão testando combinações que podem agradar o gosto dos usuários.
Os engenheiros que aparecem no documentário denominam “tecnologia persuasiva”. Sem que seus criadores tenham controle, as redes sociais vão combinando e trabalhando a partir dos interesses dos usuários, criando novos hábitos e emoções. Interferem na autoestima das pessoas, criando necessidades e desejos. E as pessoas, vivendo em suas próprias bolhas, pois as redes sociais oferecem apenas informações que correspondem aos pensamentos e interesses de cada usuário, passam a acreditar que todos pensam exatamente como elas pensam, o que prejudica até as condições do estabelecimento da dialética, gerando a polarização política, que vem separando as pessoas e enfraquecendo democracias pelo mundo.
As redes sociais são construídas de tal forma que as pessoas serão expostas a produtos, serviços, assuntos e ideias que vão ao encontro dos interesses de quem os queira vender. Há também um prodígio dentro das redes sociais, que oferecem entretenimento “gratuito”, fazendo com que as pessoas não consigam se desvencilhar de seus conteúdos. Um vídeo leva, sucessivamente e quase infinitamente, a outro vídeo e a tantos outros caminhos para novos vídeos. Vídeos “engraçados” ou “aflitivos”, vídeos que apontam novos golpes e riscos são compartilhados aos milhares, fazendo com que outras pessoas sejam arrebatadas por esses caminhos sem fim e fiquem cada vez mais enredados nos corredores espelhados que se multiplicam em miríades. Ao servirem-se de tal forma de “lazer” e “diversão”, as pessoas perdem horas inteiras por dia. Além disso, consomem produtos e serviços (muitas vezes desnecessários) e são convencidas sobre ideias. Até mesmo regimes de governo estão sendo alvo de distúrbios a partir das redes sociais.
No intuito de se fazerem presentes nesse ambiente digital, pessoas expõem suas vidas particulares, as vidas de seus filhos, de parentes e de pessoas desconhecidas, sem observar a necessidade de dar privacidade a alguns aspectos de suas rotinas. Pessoas
perdem as vidas ao arriscarem-se em precipícios ou em estradas de ferro, na tentativa de fazer vídeos interessantes para postarem nas redes sociais e atraírem não apenas os olhares de seus pares, mas também angariarem “seguidores”, fama e, quiçá, propostas de publicidade para a consecução de uma renda extra.
Em um outro extremo, cenas de violência brutal, desafios que levam crianças e adolescentes a suicídios inconscientes, plataformas que não seguem nenhum tipo de lei ou regra moral e o calabouço infernal, a chamada “deep web” na qual os instintos mais bestiais dos seres humanos são expostos sem nenhum pudor, onde as sombras da humanidade circulam livremente na obscuridade. Nesses lugares lúgubres, escuros e profundos, a animalidade do ser que é meio homem, meio besta, o touro agressivo, primitivo e sedento de vidas, destroça vidas e se alimenta do medo e da dor sem ser incomodado.
As redes sociais, criadas a partir de um objetivo interessante, e aparentemente inofensivo, de unir pessoas, passaram a ser uma potente e agressiva ferramenta de vendas. Tudo é vendável nas redes sociais. E são poucos que conseguem não se colocar no ambiente das redes sociais. Uma vez dentro desse ambiente, são poucos os conseguem livrar-se dos labirintos que não só prendem, mas também ensejam a perda, não apenas do tempo de vida, mas também, não poucas vezes, da noção de realidade. E os recintos do labirinto são cada vez mais profundos à medida que deixamos de ter consciência dos absurdos que abrigam. Vamos nos perdendo na inconsciência enquanto seguimos por caminhos que vão descendo mais profundamente nessa sala de espelhos infinitos.
O labirinto das redes sociais atende muito bem aos interesses de seus criadores, porquanto os engenheiros que aparecem no documentário “O dilema das redes” esclarecem que todas as empresas de tecnologia competem pela atenção de seus usuários, pois seus ganhos dependem de suas habilidades em prender a atenção e do tempo que conseguem manter o usuário ocupado e atento aos seus conteúdos. No centro desse labirinto tão bem arquitetado está o grande touro de bronze, simbolizando a fúria e a violência do capitalismo. No documentário é dito que as empresas de tecnologia estão ganhando mais dinheiro do que em toda a História da humanidade.
Entre deuses, semideuses, heróis e monstros, a maravilhosa narrativa mitológica relega ao lugar de coadjuvante o arquiteto. Dédalo, citado por mitólogos por seu pensamento engenhoso e criativo, aparece ao lado dos personagens principais da narrativa, auxiliando-os em suas necessidades, inventando o que seja necessário para que realizem os seus desejos.
Mas pode-se observar que, não fosse por Dédalo, talvez o Minotauro sequer existisse, pois foi ele quem viabilizou a aproximação de Pasífae de modo que pudesse seduzir magnífico touro branco, presente de Poseidon a Minos. Posteriormente, construiu o fantástico e invencível labirinto onde foi confinado o monstro. E foi ele quem, de modo indireto, ajudou Teseu a sair do labirinto. Dédalo havia sido expulso de Atenas após ter cometido um crime. Esse personagem tem a qualidade de ser muito inteligente, mas também de caráter duvidoso e sem escrúpulos (FERRY, 2012).
Ao que se observa, Dédalo não tece questionamentos sobre as ordens ou pedidos que lhe são dirigidos. A um só tempo serve ao rei Minos e constrói engenhos que auxiliam a traição contra o soberano, tanto no episódio da construção da vaca que ajudará a rainha Pasífae seduzir o touro, quando no momento em que orienta a princesa Ariadne para que esta auxilie Teseu a derrotar o Minotauro. O labirinto se mostra como uma obra-prima tão perfeita que nem mesmo seu criador é capaz de sobrepujá-lo. Esse labirinto é o local onde será encerrada uma criança. Uma criança monstruosa, mas ainda assim uma criança. Posteriormente, outras crianças serão jogadas ao labirinto em sacrifício. Mas nada disso parece tocar os brios de Dédalo.
Da mesma forma, as redes sociais modernas, labirintos onde as vidas se perdem em entretenimento e informações inúteis, também são arquitetadas por pessoas inescrupulosas, que não poupam esforços em criar recursos para prender a atenção e gerar discussões vazias, que afastam as pessoas e criam mecanismos de dominação a partir da separação. O obscurantismo inconsciente faz com que as pessoas, cada vez em maior número e com menos idade, sejam lançadas ao labirinto, que fica mais profundo à medida que o tempo passa.
E tudo isso gera um lucro desmedido aos criadores desses labirintos infinitos, que parecem não se abalar em face das barbáries que são praticadas por intermédio das redes sociais, seja o caso de linchamentos virtuais ou de indução a mortes precoces. Assim como Dédalo, esses arquitetos não se comovem tampouco se responsabilizam pelo uso que é dado aos seus engenhos. E um ponto no documentário “O dilema das redes” chama a atenção, os engenheiros confessam que, mesmo sabendo de todos os recursos que são utilizados pelas empresas de tecnologia para viciar seus usuários, eles próprios também
estavam viciados nas redes sociais e, de vez em quando, surpreendiam-se ao notar que estavam presos nas redes em suas próprias casas, alheios aos filhos e ao tempo de lazer. Os arquitetos das redes sociais também não estão imunes ao labirinto.
Ariadne, por sua vez, cujo nome significa “santa” e “pura” (KERENYI, 2015a.), ajudou Teseu por ter se apaixonado pelo herói assim que este desembarcou na ilha de Creta. Foi por amor que Ariadne pediu ajuda a Dédalo, no intuito de auxiliar Teseu a derrotar o Minotauro. Esse amor desaguou na traição a seus pais, Minos e Psífae, porquanto ajudou a assassinar o próprio irmão. Karl Kerényi (2015b) e Junito Brandão (1987) apontam para o fato de que Ariadne era noiva de Dionísio e tinha recebido deste uma coroa dourada, em troca de sua castidade. Em algumas versões, Ariadne acompanha Teseu no interior do labirinto e sua coroa dourada ajuda a iluminar o caminho. Ao apaixonar-se por Teseu, Ariadne traiu seu noivo Dionísio. Todavia, seja pela versão em que Ariadne entrega a Teseu um novelo de linha ou por aquela versão em que o acompanha a fim de iluminar o caminho com sua coroa dourada, é o amor dessa donzela que a motiva a guiar seu amado no interior do labirinto. O amor é que salva o herói da morte certa, pois sem Ariadne Teseu não encontraria a saída do antro.
Segundo Jung, “Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro.” (JUNG, 2013, §78). Os perigos do labirinto, inconsciente, decorrem das distorções do poder manipulativo, do domínio perverso de Minos. Em contraponto a esse poder desmedido, é o amor, que representa esse fio de consciência, que pode guiar até a saída do antro. Foi o amor de Ariadne que guiou Teseu para fora do labirinto inconsciente, dos corredores escuros do covil do Minotauro.
Em relação aos labirintos modernos, é preciso que esse fio de consciência volte a brilhar pelos caminhos obscuros que cerceiam a vida e a vontade plena. É necessário que tenhamos consciência do labirinto para que possamos buscar o fio que nos retira dele. Talvez seja cabível a reflexão sobre o motivo que nos enreda ao amor pelo labirinto das redes sociais, negando a vida plena fora delas. É possível que seja de proveito tomar consciência do quanto é pernicioso acreditar que todas as imagens desses labirintos de espelhos, forjados nas redes sociais, são reais, em detrimento da vida que acontece na superfície. É o resgate da vida plena e consciente, fora da realidade forjada das redes sociais, que serve como fio condutor para fora das paredes estreitas e obscuras do labirinto da inconsciência.
O amor de Ariadne por Teseu é o amor romântico, de uma mulher por um homem. Porém, não se pode olvidar que todas as formas de amor são manifestação de um mesmo sentimento que nos humaniza, que possibilita não apenas o olhar para si próprio, mas o olhar para o outro de modo compassivo. Tomar consciência de que o mundo das redes sociais não corresponde ao mundo real e olhar para as outras pessoas de um modo não autômato talvez seja o caminho em direção à luz. Somente a partir dessa nova consciência é que se pode encarar a natureza terrível desse labirinto moderno.
(1) Especialista em Psicologia Junguiana
Analista em formação pelo CEJAA – Centro de Estudos Junguianos e Analistas Associados
(2) Dicionário de Simbolos – Jean Chevalier e Alain Gheerbrant
(3) The social dilemma, Estados Unidos, 2020, Direção: Jeff Orlowski, disponível na Netflix
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BRANDÃO, J.S. Mitologia grega, V. III, Petrópolis, Vozes, 1987.
BRION, M. Leonard de Vinci, Paris, 1952, apud CHEVALIER, J e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos, mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 34ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2020.
CHEVALIER, J e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos, mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 34ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2020.
FERRY, L. A sabedoria dos mitos gregos, aprender a viver II, Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. Edição digital. Petrópolis: Vozes, 2013.
A natureza da psique. Edição digital. Petrópolis: Vozes, 2014.
KERENYI, K. A mitologia dos gregos, V. I, A história dos deuses e dos homens, Petrópolis: Vozes, 2015a.
A mitologia dos gregos, V. II, A história dos heróis, Petrópolis: Vozes, 2015b.
Commentaires