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A indissociabilidade: corpo, psique e sociedade na psicossomática

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    Cejaa
  • há 6 dias
  • 17 min de leitura

Elisangela dos Reis



RESUMO: Uma compreensão psicossomática alinhada às construções teóricas mais contemporâneas exige uma perspectiva que vá além das explicações exclusivamente biológicas ou psicológicas, incorporando a influência dos fatores sociais e coletivos no adoecimento. Este artigo examina a psicossomática a partir de diferentes abordagens, destacando as contribuições da psicologia analítica e discutindo a psicossomática como um campo que transcende reducionismos, abordando a interdependência entre corpo, psique e sociedade. A forma como a relação entre saúde e doença é compreendida impacta diretamente a constituição das subjetividades, tornando essencial evitar perspectivas individualistas que responsabilizam o sujeito isoladamente. O objetivo deste estudo é ressaltar a importância de uma visão ampliada da psicossomática, considerando os múltiplos sentidos do sintoma. Os fenômenos psicossomáticos não devem ser vistos apenas como manifestações fisiológicas de conflitos internos, mas como expressões simbólicas que evidenciam a interdependência entre o sujeito e seu contexto social. Ao reconhecer a psicossomática como um fenômeno multifacetado, este estudo contribui para abordagens mais integrativas na clínica e para reflexões sobre as dinâmicas sociais implicadas no processo de adoecimento.


Palavras-chave: Psicossomática. Psicologia analítica. Contexto social. Expressões simbólicas.




A INDISSOCIABILIDADE: CORPO, PSIQUE E SOCIEDADE NA PSICOSSOMÁTICA


Uma abordagem psicossomática, alinhada às construções teóricas mais contemporâneas, exige reconhecer a indissociabilidade entre processos psíquicos, corporais e contexto social. Se a superação da dicotomia entre corpo e mente já representa um desafio teórico e clínico, a complexidade aumenta quando consideramos os efeitos das variáveis sociais, culturais e relacionais sobre o indivíduo. O ser humano não vive isolado em sua corporalidade ou subjetividade; ele está constantemente imerso em redes de relações, nas esferas (sociais, políticas, econômicas, ambientais) que estruturam sua experiência e realidade psíquica, moldando suas vivências de saúde e adoecimento. Ignorar esses contextos significa perpetuar uma abordagem reducionista, que não apenas fragmenta a compreensão da psicossomática, mas também limita as possibilidades de intervenção clínica. Diante disso, este trabalho tem como objetivo ressaltar a importância dessa abordagem ampliada, destacando a relevância dos fatores sociais e coletivos na constituição dos fenômenos psicossomáticos.


Embora entendimentos contemporâneos de saúde e doença considerem uma multiplicidade de fatores — incluindo aspectos biológicos, sociais e psicológicos — observa-se que, para alguns leigos e em certas práticas clínicas, ainda predomina uma abordagem reducionista. Essa perspectiva simplista interpreta dificuldades psíquicas não resolvidas como manifestações no corpo, traduzindo-se em dores e doenças físicas quase como uma resposta automática e unidirecional. Ramos (1994) destaca que, embora o termo psicossomatização continue amplamente utilizado, sua noção se tornou ultrapassada. É essencial evitar um modelo que, embora superado na teoria, ainda persista na prática. A compreensão de saúde deve transcender a mera associação entre fatores psicológicos e suas manifestações físicas. A formação de sintomas é um fenômeno multifacetado.


Rodrigues, Campos e Pardini (2020, p. 16) corroboram essa ideia ao afirmar que “Já foi o tempo em que a expressão 'psicossomática’ era utilizada para designar um conjunto específico de doenças, como úlcera péptica, asma brônquica e hipertensão arterial”. A compreensão atual reconhece que todo adoecimento envolve, de alguma forma, aspectos psíquicos e somáticos. Mello Filho (2010) defende que qualquer doença incide sobre um ser provido de soma e psique, tornando-se, por definição, psicossomática. No entanto, reduzir a psicossomática à valorização exclusiva dos fatores psicológicos seria um equívoco.


Esse tipo de abordagem pode enfatizar a responsabilidade individual no adoecimento, sugerindo que o sofrimento físico resulta da incapacidade de lidar com determinados âmbitos da vida. A subjetividade moldada pelo sistema econômico atual pode reforçar essa visão, deslocando problemas estruturais para a esfera pessoal e invisibilizando coletivos.


Segundo Rocha e Santos (2024), os processos que formam os sujeitos são influenciados pela lógica do sistema econômico vigente, que desloca questões estruturais e sociais para o âmbito individual. Assim, o sofrimento passa a ser percebido como falha pessoal, associada à falta de esforço, inadequação ou fracasso em “se reinventar”. No campo da saúde mental, o neoliberalismo transforma o sofrimento em algo a ser gerenciado pelo consumo e por práticas voltadas ao aprimoramento pessoal. A lógica do mercado infiltra-se na subjetividade, convertendo a busca por bem-estar e saúde em um produto a ser consumido, colocando o sujeito sob constante pressão para se aperfeiçoar e adaptar-se às exigências do mercado. Além disso, fatores como precarização do trabalho, competição acirrada e insegurança social – efeitos diretos das políticas neoliberais – intensificam o sofrimento psíquico, enfraquecendo os pilares de segurança, solidariedade e coletividade. Nesse contexto, o indivíduo é responsabilizado por sua condição mesmo não contando com uma rede de apoio social ou políticas públicas eficazes que abordem os determinantes sociais do sofrimento.


 

1.       DESENVOLVIMENTO DA PSICOSSOMÁTICA

 

Os conceitos de saúde, doença, bem como as teorias psicológicas modernas sobre a temática foram sendo construídos ao longo da história por meio da integração de elementos provenientes de diversas áreas do saber, como a ciência, a filosofia, além de saberes populares, práticas e crenças do senso comum. Essas elaborações não ocorrem em sequência linear, assim como a incorporação de novos conceitos em uma área de conhecimento não ocorre de forma abrupta, em vez disso, as perspectivas se acumulam e coexistem em camadas, frequentemente de forma simultânea e paradoxal, refletindo a complexidade das transformações culturais e científicas.


O termo psicossomático foi introduzido pelo psiquiatra alemão Heinroth após um longo período de estruturação conceitual, com a criação das expressões "psicossomática", em 1918, e "somatopsíquica", em 1928.  Apesar disso, foi somente com as contribuições de Franz Alexander, médico e influente psicanalista húngaro, e da Escola de Chicago, em meados do século XX, que o movimento se consolidou, marcando um avanço significativo no estudo das relações entre mente e corpo (Mello Filho, 2010). O psiquiatra alemão Johann Christian Heinroth foi um dos primeiros a explorar a relação entre mente e corpo, lançando as bases para o conceito de psicossomática. O termo "psicossomática" foi introduzido oficialmente em 1918, seguido pela expressão "somatopsíquica", em 1928. No entanto, foi somente com as contribuições de Franz Gabriel Alexander, médico e influente psicanalista húngaro, e da Escola de Chicago, em meados do século XX, que o movimento se consolidou, marcando um avanço significativo no estudo das relações entre mente e corpo (Mello Filho, 2010)


Mello Filho (2010, p. 29) define psicossomática como “uma ideologia sobre a saúde, o adoecer e sobre as práticas de Saúde, é um campo de pesquisas sobre estes fatos e, ao mesmo tempo, uma prática – a prática de uma medicina integral”. Segundo o autor, a evolução da psicossomática percorreu três fases principais: uma inicial, fundamentada em bases psicanalíticas; uma intermediária, com enfoque behaviorista e estudos sobre o estresse; e uma fase atual, caracterizada por uma abordagem multidisciplinar que destaca a relevância do contexto social e da interação entre diferentes áreas da saúde.


Em consonância com essa terceira fase Rodrigues, Campos e Pardini (2020, p. 2) definem psicossomática como: “o estudo sistemático das relações existentes entre os processos sociais, psíquicos e funções orgânicas ou corporais”. Os autores abordam a psicossomática como um ramo do conhecimento que investiga e trata questões humanas, englobando a promoção e a atenção à saúde em suas dimensões orgânica, psíquica e social. Além disso, destaca que uma das principais motivações desse campo é restabelecer o diálogo entre as Ciências Biomédicas e as Ciências Humanas e Sociais, frequentemente enfraquecido pela fragmentação do conhecimento e pela ênfase excessiva na especialização, que pode dificultar uma visão integrada do processo saúde-doença.


Para fins de estudo, a segmentação em áreas específicas do conhecimento é um recurso metodológico necessário. No entanto, é fundamental que essa divisão não resulte em uma perda da noção do todo.  “Disciplinas isoladas ou saberes compartimentalizados serão incapazes de fornecer respostas e instrumentos adequados para lidar com as complexas interações presentes no processo saúde e doença” (Rodrigues; Campos; Pardini, 2020, p. 3).


O fundador da psicologia analítica, Carl Gustav Jung, já enfatizava a necessidade de um olhar mais abrangente, reconhecendo que a experiência subjetiva não poderia ser reduzida a meros processos biológicos. A separação entre psique e corpo tem sido frequentemente tratada como uma dicotomia natural, quando, na realidade, representa uma construção intelectual que não reflete a complexidade real. Mais do que categorias isoladas, psique e corpo interagem de maneira dinâmica e inseparável, influenciando-se mutuamente. No entanto, o distanciamento entre a psicologia moderna e as ciências humanas acadêmicas pode ser atribuído à predominância dos pressupostos médico-biológicos, que adotam uma visão mecanicista dos fenômenos psíquicos. Enquanto as ciências humanas se fundamentam em uma perspectiva voltada para o espírito, essa diferença conceitual é ampliada pela linguagem técnico-científica da medicina, tornando mais difícil a aceitação de uma abordagem mais integrativa e tolerante (Jung, 2022, §120).


Complementando a discussão sobre as diversas linhas da psicossomática, é fundamental considerar a concepção de saúde proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Na Declaração de Alma Ata sobre Cuidados Primários (1978), a saúde é definida como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças. Essa visão reforça a ideia de que a promoção e a atenção à saúde devem englobar não apenas aspectos biológicos, mas também fatores sociais e psicológicos. A OMS destaca que a saúde é um direito humano fundamental, cuja realização depende da colaboração de diversos setores sociais e econômicos. Além disso, enfatiza a importância da participação ativa das comunidades no planejamento e na execução dos cuidados de saúde, alinhando-se assim à proposta da psicossomática de um diálogo entre as Ciências Biomédicas e as Ciências Humanas e Sociais. Dessa forma, a integração de diferentes saberes e a promoção de um modelo de saúde mais abrangente são essenciais para enfrentar as desigualdades existentes e garantir uma melhor qualidade de vida para todos.


 

1.1 A PSICOSSOMÁTICA NA PSICOLOGIA ANALÍTICA

 

O modelo analítico de psicossomática compreende a saúde e a doença como expressões simbólicas do estado da relação entre ego e Self. Psique e corpo são considerados realidades interdependentes, onde aspectos emocionais e físicos são inseparáveis. O símbolo é a expressão do fenômeno psique-corpo, feita por meio da percepção das alterações fisiológicas e das imagens referentes, sincronicamente (Ramos, 1994).


A distinção entre mente e corpo é uma dicotomia artificial, um ato de discriminação baseado muito mais na peculiariedade da cognição intelectual do que na natureza das coisas. De fato, é tão íntimo o inter-relacionamento dos traços psíquicos e corporais, que podemos não somente estabelecer inferências sobre a constituição da psique a partir da constituição do corpo, como também podemos inferir características corporais a partir das peculiaridades psíquicas (Jung, 2015, § 979).

 

Nessa abordagem, o ego é entendido como o centro da consciência, o eu que organiza a experiência subjetiva e possibilita a relação com os conteúdos psíquicos. O Self, por sua vez, representa a totalidade da psique, a matriz de onde emergem as imagens arquetípicas e as tendências psíquicas inatas para estruturação e integração da personalidade, englobando tanto aspectos conscientes quanto inconscientes. O conceito de complexo refere-se a um conjunto de ideias interligadas que, devido à sua autonomia, mantêm certa independência em relação ao controle central da consciência. Assim, podem, em determinados momentos, emergir de forma inesperada ou até mesmo contrariar as intenções do indivíduo (Stein, 2006).


O adoecimento é compreendido como uma expressão simbólica de um desequilíbrio na relação entre ego e Self, indicando um desvio que precisa ser corrigido. Os sintomas somáticos ou psíquicos têm origem nos complexos. Quando um complexo constela (ou seja, é ativado), ele provoca alterações simultâneas tanto no nível fisiológico quanto no psicológico. Essa interconexão entre psique e corpo foi evidenciada nos primeiros testes de associação de palavras realizados por Jung, nos quais se demonstrou que todo fenômeno psíquico possui um correspondente fisiológico. Esse processo ocorre de maneira involuntária, independente da percepção consciente do indivíduo. Os conteúdos inconscientes podem ser sentidos como um mal-estar indefinido ou expressar-se por meio de sintomas mais evidentes, tanto no corpo quanto na psique (Ramos, 1994).


Os complexos possuem um núcleo arquetípico, referindo-se a padrões universais e primordiais presentes no inconsciente coletivo. Essa característica resulta em manifestações fisiopatológicas e psicopatológicas que apresentam uma certa universalidade. Essa universalidade é corroborada por estudos que investigam a relação entre traços de personalidade e doenças, revelando resultados significativos. No entanto, embora existam traços de personalidade e doenças que demonstrem resultados relevantes, as tentativas de estabelecer relações fixas e universais entre corpo e psique levaram à criação de sistemas rígidos e reducionistas (Ramos, 1994). Esses sistemas podem limitar a compreensão da complexidade das interações que envolvem a saúde e o adoecimento, abrangendo aspectos sociais, psíquicos e orgânicos.


Apesar de a psicologia analítica se basear na ideia da natureza paradoxal da psique, que abrange tanto os aspectos individuais quanto os coletivos, muitas vezes há uma compreensão distorcida dessa complexidade. O indivíduo não é apenas um ser isolado, mas parte de uma trama simbólica maior, cujas manifestações atravessam tempos e espaços. Ao compreender a psique não apenas como algo individual, mas como um espaço onde o passado e o presente, o arcaico e o contemporâneo se encontram e se transformam, a psicologia analítica oferece uma visão mais ampla ‘sobre quem somos e como nos construímos por meio das narrativas que vivemos’. Essas narrativas, no entanto, não são formadas de maneira isolada, mas se constroem em constante relação com o ambiente externo, refletindo as interações sociais, culturais e históricas que moldam a experiência subjetiva.


No entanto, por vezes, parece que essa compreensão se limita a uma perspectiva estritamente individual. Em outras ocasiões, as explicações parecem saltar do entendimento pessoal para lógicas mitológicas distantes, sem considerar o coletivo contemporâneo como uma variável. Essa relação entre o "dentro" e o "fora" é crucial para uma compreensão mais profunda da psique humana. Ignorar o contexto coletivo pode levar a uma visão fragmentada, que não capta a riqueza das interações sociais e culturais que moldam a experiência e identidade.


Essa ampliação da perspectiva liga-se diretamente ao objetivo deste artigo, que ressalta a importância de uma abordagem ampliada, destacando a relevância dos fatores sociais e coletivos na constituição dos fenômenos psicossomáticos. Reconhecer os espaços intermediários das relações interpessoais e as estruturas sociais, junto à interação entre psique e corpo, enriquece a compreensão sobre saúde e adoecimento. Essa visão é essencial para desenvolver intervenções mais eficazes, que considerem a complexidade das experiências humanas.


Eksterman (2010), fundador e ex-presidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática, aponta que, embora Freud tenha iniciado sua trajetória como médico, ele rejeitou a ideia de que a psicanálise pudesse ser reduzida a uma prática exclusivamente médica. Essa recusa não implicava o desprezo por sua formação, mas refletia sua percepção da emergência de uma nova área do conhecimento, localizada entre o corpo e a mente. Essa área, inclui também os espaços intermediários das relações interpessoais, destacando a importância das interações humanas na compreensão do adoecimento.


Na psicologia analítica, a psique humana é composta por diversas camadas que revelam a complexidade da interação entre o inconsciente individual e o coletivo. Marie-Louise von Franz (1997), uma das principais colaboradoras de Jung, ressalta que o conceito de "inconsciente coletivo" integra tradições histórico-espirituais com dados empíricos das ciências naturais modernas. Essa organização é ilustrada por um modelo apresentado pela autora (figura 1), que demonstra como essas camadas se conectam e influenciam umas às outras, formando uma trama que transcende o indivíduo e reflete uma experiência compartilhada pela humanidade.

Fonte: Von Franz (1997, p. 94).
Fonte: Von Franz (1997, p. 94).

  No nível mais superficial, encontramos o campo consciente do Eu individual (F), que representa aquilo que o indivíduo percebe e reconhece em sua experiência cotidiana. Abaixo dessa camada, reside o inconsciente individual (E), composto por conteúdos psíquicos adquiridos ao longo da vida, incluindo memórias esquecidas ou reprimidas. Avançando para uma dimensão mais ampla, encontramos a camada do inconsciente de grupos ou povos (D), que abrange conteúdos compartilhados por comunidades específicas.  Nessa camada, o indivíduo pode simbolizar, de forma inconsciente, um aspecto coletivo do grupo. Além disso, há a camada do inconsciente regional (C), onde conteúdos psíquicos refletem mitos, crenças e narrativas característicos de uma determinada localidade ou cultura. Mais profundamente, encontramos o inconsciente coletivo da humanidade (B), um depósito de símbolos, mitos e arquétipos universais que conectam todos os seres humanos, independentemente de sua origem cultural. Essa camada representa a base estrutural comum da psique humana, unindo culturas e épocas. No núcleo desse modelo, situa-se a camada unitária (A), onde os múltiplos arquétipos convergem em um centro comum, refletindo a unidade essencial da psique (Von Franz,1997).


Embora essas camadas sejam descritas de forma distinta, é importante ressaltar que a transição entre elas é fluida e contínua. Por exemplo, nos sonhos, conteúdos da experiência pessoal frequentemente se misturam com símbolos mitológicos universais, evidenciando a interconexão entre o inconsciente individual e o coletivo. Essa perspectiva nos convida a compreender a psique como um espaço dinâmico e multifacetado, onde o individual e o coletivo coexistem e se influenciam mutuamente (Von Franz ,1997).


A partir de tal compreensão, pode-se elaborar que, no Modelo Analítico[1], a saúde e o adoecimento não são fenômenos isolados dentro de uma única camada da psique, mas transitam e fluem continuamente entre diferentes camadas, conscientes e inconscientes, de caráter individual e coletivo, contemporâneo e arcaico. Trata-se de fenômenos em constante movimento, que atravessam e interligam diversas dimensões da experiência humana, refletindo a interação contínua entre o indivíduo, sua história e os contextos coletivos que o moldam e influenciam, com seu correlato no corpo, visto que psique e corpo são considerados realidades interdependentes, onde aspectos emocionais e físicos se entrelaçam e se tornam inseparáveis.


 

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO SAÚDE-DOENÇA-SOCIEDADE


Camargo Jr. (2010), enfatiza que a doença, especialmente quando crônica ou grave,é um acontecimento social que reflete não apenas a condição individual, mas também as dinâmicas sociais e culturais em que o indivíduo está inserido. A relação entre sociedade e doença é múltipla, pois tanto a estrutura social pode influenciar o adoecimento quanto a própria definição de doença é moldada culturalmente.


Ao discutir o conceito de sociedade, é fundamental considerar tanto situações concretas, como o arcabouço jurídico, as relações de trabalho e as localizações geográficas, quanto uma intrincada rede de significados. Essa rede não apenas está subentendida nas descrições anteriores, mas também molda a percepção que os indivíduos têm de si mesmos e do mundo que os cerca, influenciando até a linguagem utilizada para expressar essas realidades. Ao abordar categorias sociais, é essencial lembrar que estamos tratando de algo que é simultaneamente "externo" e "interno" ao ser humano, que é tanto criatura quanto criador. (Camargo Jr., 2010).


Aspectos biológicos, como a busca por alimentos, por exemplo, não se manifestam isoladamente, mas são influenciados por fatores sociais internalizados, refletindo nas relações emocionais e no funcionamento orgânico. Isso é especialmente verdadeiro nas internalizações advindas de interações com membros significativos do grupo social, incluindo a família. As emoções que nos afetam, sejam de alegria ou tristeza, decorrem da perspectiva de mundo que construímos através das nossas interações sociais. Embora os impulsos biológicos, como a fome, sejam universais, a maneira como reagimos a eles é profundamente influenciada pelas normas e hábitos do nosso meio social, determinando não apenas o que comemos, mas também quando e onde o fazemos (Rodrigues; Campos; Pardini, 2020).


Ampliando as questões alimentares para a relação com saúde e adoecimentos, é possível perceber como os distúrbios alimentares não apenas refletem a complexidade da interação entre corpo e psique, mas também estão entrelaçados com as expectativas sociais, culturais e históricas. Os padrões alimentares, frequentemente vistos como escolhas individuais, são, na verdade, influenciados por um conjunto intrínseco de influências externas, como o acesso aos alimentos, hábitos sociais aprendidos, normas culturais sobre o corpo, padrões estéticos e as formas como os alimentos são produzidos.


A complexidade do ato de se alimentar pode tanto favorecer a saúde mental e física, promovendo uma vida de maior qualidade, quanto contribuir para distúrbios alimentares, como obesidade, anorexia e bulimia. Em contextos de vulnerabilidade social e econômica, a falta de acesso a alimentos de qualidade intensifica esse impacto, visto que os indivíduos, ao não conseguirem acessar alimentos frescos e nutritivos, acabam recorrendo a opções mais baratas e processadas, com alto teor de açúcar, gordura e sódio. Embora mais acessíveis, esses alimentos frequentemente estão ligados ao desenvolvimento de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, problemas cardiovasculares e obesidade.


Camargo Jr. (2010), destaca que visões limitadas de pesquisadores podem restringir a seleção dos fatores estudados, resultando em uma compreensão superficial das causas de adoecimento. Como ilustração, ele apresenta o seguinte exemplo:

Houve um momento, há alguns anos, em que vários estudos provavam uma estreita relação entre mortalidade infantil e número de filhos por casal. Por conta disso, entidades defensoras do controle compulsório da natalidade utilizaram esses estudos como embasamento para suas teses. Ocorre que havia outro fator, fortemente associado aos dois, tanto à mortalidade infantil quanto ao tamanho da prole: a pobreza das populações estudadas (Camargo Jr, 2010, p. 106).

 

Muitas vezes, aspectos fundamentais, como a pobreza e a desigualdade social, são negligenciados, mesmo sendo determinantes significativos na saúde da população. Essa limitação na pesquisa pode resultar em interpretações distorcidas que favorecem certas agendas políticas ou sociais.


A percepção das doenças transcende o âmbito individual, sendo profundamente influenciada pela cultura e pelos significados que lhe são atribuídos. A forma como cada pessoa lida com o sofrimento e as tensões sociais é um reflexo da interação entre fatores externos e suas representações internas. Para compreender a saúde e a doença de maneira mais completa, é essencial considerar essa complexidade, reconhecendo que a doença é uma parte intrínseca da vida social e das experiências humanas (Camargo Jr., 2010).


Além disso, o conceito de representação, que é fundamental tanto na psicanálise quanto na Antropologia, pode ser definido como uma construção psíquica que simboliza objetos e categorias, moldada pela interação do indivíduo com as culturas das quais faz parte. Ao buscar ajuda médica, os pacientes já trazem consigo um diagnóstico prévio, muitas vezes permeado por fantasias conscientes ou inconscientes relacionadas à sua condição (Camargo Jr., 2010).


Entretanto, é importante ressaltar que, embora a vida em sociedade possa ser uma fonte de sofrimento e doença, essa relação não é necessariamente automática. O 'sofrimento social' não implica, de forma direta, em adoecimento, uma vez que os fatores que influenciam a saúde são complexos e multifacetados (Camargo Jr., 2010).


O sintoma não é um evento isolado; ele emerge em um contexto biológico, psicológico e social específico. Como observa Pontes (1975, apud Rodrigues, Campos e Pardini, 2020, p. 12), “A doença apareceu naquele momento biológico, psicológico e social da existência, porque os fatores oriundos do mundo exterior e interior coincidiram em um organismo vulnerável aos agentes estressores, em função de sua história pessoal, perturbando-lhe a homeostase”.  Esse entendimento rompe com a dicotomia entre o físico e o psíquico, reconhecendo que um mesmo sintoma pode possuir representação tanto no corpo quanto na mente (Rodrigues; Campos; Pardini, 2020).


Na atenção à saúde, é essencial que os profissionais das diversas áreas adotem uma abordagem que considere a singularidade de cada paciente. Um choro diante de uma cena triste, por exemplo, não pode ser reduzido à mera secreção lacrimal; trata-se de uma experiência emocional complexa que envolve processos neuroquímicos e simbólicos simultaneamente. Dessa forma, estudar a psicossomática significa explorar o ponto de interseção entre a experiência psíquica, corporal e social. Reduzir a patologia a um único aspecto representa um reducionismo inadequado, assim como limitar o tratamento à observação das manifestações psicológicas não condiz com a concepção integral da psicossomática. Essa perspectiva busca compreender as múltiplas camadas do ser humano, sem restringir sua experiência a uma única dimensão (Rodrigues; Campos; Pardini, 2020).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS


A psicossomática, ao longo de seu desenvolvimento, tem se consolidado como um campo de estudo que ultrapassa a dicotomia entre mente e corpo, reconhecendo a complexidade dos fatores envolvidos na saúde e no adoecimento humano. Essa perspectiva já estava presente nos estudos de Jung, desde os testes de associação de palavras, que demonstraram a existência de um correlato fisiológico para todo fenômeno psíquico. Além dessa constatação, Jung propôs uma abordagem que não reduz a experiência subjetiva a processos meramente biológicos, mas a insere em um contexto mais amplo, no qual fatores psíquicos e simbólicos desempenham um papel essencial. Essa visão dialoga com estudos contemporâneos, como os de Rodrigues, Campos e Pardini (2020), que abordam a saúde e a doença como fenômenos multifatoriais, e com os de Camargo Jr. (2010), que ressaltam a inter-relação entre adoecimento e sociedade.


Esse olhar ampliado distancia-se de perspectivas reducionistas que isolam a patologia em um único domínio, seja ele orgânico ou psicológico, favorecendo uma escuta mais atenta aos múltiplos sentidos do sintoma. Assim, os fenômenos psicossomáticos não são apenas manifestações fisiológicas de processos internos, mas também expressões simbólicas e dinâmicas que refletem a complexa interdependência entre o sujeito e seu meio.


Sob a ótica da psicologia analítica, como aponta Von Franz (1997), a psique não se restringe ao indivíduo; ela incorpora elementos coletivos, como mitos, arquétipos e experiências compartilhadas, que operam tanto em um nível regional quanto em camadas mais profundas. Isso significa que as vivências pessoais estão inseridas em uma rede mais ampla de significados do que as experiências individuais; logo, as compreensões sobre saúde e adoecimento também são ligadas por essa rede.


Para além das implicações clínicas, é fundamental que a psicossomática seja compreendida sob uma perspectiva contemporânea, superando visões ultrapassadas que reduzem o adoecimento a explicações exclusivamente biológicas ou psicológicas. A maneira como se entende a relação entre saúde e doença tem impacto direto na formação das subjetividades, sendo essencial promover uma visão que reconheça a multiplicidade de fatores envolvidos no fenômeno, evitando perspectivas individualistas que responsabilizam o sujeito isoladamente.


Na prática clínica, essa compreensão exige o fortalecimento de abordagens terapêuticas que promovam uma visão integral, respeitando a singularidade do indivíduo e sua inserção em um contexto mais amplo, garantindo uma escuta que contemple as dimensões psíquicas, simbólicas, sociais e corporais.

 


REFERÊNCIAS


CAMARGO JR., Kenneth Rochel. Algumas considerações sobre a relação doença-sociedade em psicologia médica. In: MELLO FILHO, Julio de [et al.]. Psicossomática hoje. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010. Cap. 9, p. 106-110.


Declaração de alma ata sobre cuidados primários. Alma-Ata, URSS, 12 de setembro de 1978. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_alma_ata.pdf. Acesso em: 27 jan. 2025.


EKSTERMAN, Abram. Psicossomática: o diálogo entre a psicanálise e a medicina. In: MELLO FILHO, Julio de [et al.]. Psicossomática hoje. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010. Cap. 1, p. 29-38.


JUNG, C. G. A prática da psicoterapia. 16 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.


JUNG, C. G. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2015.


MELLO FILHO, Julio de. Introdução. In: MELLO FILHO, Julio de [et al.]. Psicossomática hoje. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010. Cap. 1, p. 29-38.

RAMOS, Denise Gimenez. A psique do corpo: uma compreensão simbólica da doença. São Paulo: Summus, 1994.


ROCHA, Tiago Humberto Rodrigues; SANTOS, Luciano Henrique Moreira. Neoliberalismo e super eu: uma leitura sobre a gestão do mal-estar contemporâneo. Revista Subjetividades, [S.L.], v. 24, n. 1, p. 1-12, 29 abr. 2024. Fundação Edson Queiroz. http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v24i1.e13427.


RODRIGUES, Avelino Luiz; CAMPOS, Elisa Maria Parahyba; PARDINI, Fernando. Mecanismo de formação dos sintomas em psicossomática. In: RODRIGUES, Avelino Luiz (ed.). Psicologia da saúde – hospitalar: abordagem psicossomática. Barueri: Manole, 2020.


STEIN, Murray. Jung: o mapa da alma – uma introdução. Tradução de Álvaro Cabral. Revisão técnica de Marcia Tabone. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.


VON FRANZ, Marie-Louise. Reflexos da alma: projeção e recolhimento interior na psicologia de C. G. Jung. 12. reimpressão. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.

 


[1] Modelo psicossomático, proposto por Denise Ramos, fundamentado na psicologia analítica.

 

 

 




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