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Política e religião se misturam: religião como função psíquica e a desigualdade do Estado Laico

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    Cejaa
  • há 5 dias
  • 27 min de leitura

Lívia Rospantini Monteiro



RESUMO: O presente artigo amplia o debate acerca da influência religiosa na construção do Estado brasileiro e da participação indígena nos espaços políticos como possibilidade de expansão da diversidade na construção do Estado Laico. Para estabelecer a conexão entre política e religião, o trabalho se debruçou na dimensão religiosa proposta por Carl Gustav Jung, ao considerar a religião como experiência do “numinoso”. 


Introdução



            A dimensão religiosa da vida humana permeia toda a obra de Carl Gustav Jung. Debruçado sobre uma perspectiva científica da psicologia empírica e atendo-se ao aspecto psicológico do fenômeno religioso, o autor observa o aspecto religioso presente e atuante em diversas épocas, em diferentes tradições religiosas, como acontecimento psíquico formado de modo espontâneo que irrompe na consciência individual (JUNG, 2023).

            O termo “religião” é empregado na obra de Jung para se referir à experiência do que Rudolf Otto (p.6) chamou de “numinoso”, um efeito que se apodera do indivíduo e produz uma transformação na consciência. Embora o aspecto religioso não seja direcionado a uma determinada fé ou profissão religiosa, o autor aponta que as religiões, como “formas codificadas e dogmatizadas de experiências religiosas originárias” (p.10), propiciam experiências ritualísticas que balizam as transformações. “De um modo ou de outro, qualquer mudança ou desenvolvimento são determinados pelos marcos dos fatos originariamente experimentados, através dos quais se estabelece um tipo particular de conteúdo dogmático e de valor afetivo” (JUNG, 2023, p.10).

          Partindo de um contexto europeu, Jung buscou na espiritualidade dos povos originários, africanos e orientais, expressões simbólicas que manifestassem os movimentos da alma, mas foi no simbolismo das religiões ocidentais dominantes que o psiquiatra suíço pode aprofundar sua investigação sobre o fenômeno religioso na sociedade.


O que geralmente se chama de “religião” constitui um sucedâneo em grau tão espantoso que me pergunto seriamente se esse tipo de religião – que prefiro chamar de “confissão” – não desempenha uma importante função na sociedade humana. Ela tem a finalidade de substituir a experiência imediata por um grupo adequado de símbolos envoltos num dogma e num ritual fortemente organizados. A Igreja Católica os mantém por força da sua autoridade absoluta. A “Igreja” protestante (se ainda se pode falar em “Igreja”) os mantém pela ênfase da fé na mensagem evangélica. Os homens estarão igualmente protegidos contra a experiência religiosa imediata, enquanto esses dois princípios forem válidos. E mais: se apesar de tudo acontecer-lhe algo imediato, eles poderão recorrer à Igreja, que está em condições de dizer se a experiência provém de Deus ou do diabo, se deve ser repelida ou aceita (JUNG, 2023, p.75).


Ao propor o aprofundamento simbólico a partir de uma leitura mitológica da religião para a compreensão dos conteúdos inconscientes e ampliação da consciência, Jung critica o catolicismo por se ater à convicção e à fé irrefletida que literatiza o mito cristão, não se baseando na experiência interior do indivíduo. Desse modo, o conteúdo da fé não se baseia mais na “numinosidade” e a compreensão literal do mito entra em conflito com a racionalidade. Além disso, o catolicismo ocultou conteúdos fundamentais do simbolismo da divindade.


A concepção confessional é, na verdade, muito antiga e dotada de um simbolismo impressionante e mitológico que, literalmente, leva a uma oposição radical com o saber. Contudo, se compreendermos, por exemplo, a ressurreição de Cristo de maneira simbólica e não literal, obteremos interpretações diversas que não entram em choque com o saber, nem prejudicam o sentido da afirmação. (...) O perigo do exagero da compreensão da literalidade na compreensão da mitologia, que pervade toda a doutrina da Igreja, pode culminar na sua recusa absoluta (JUNG, 2022, p. 521).


As perdas das imagens sagradas e dos ritos no Protestantismo da modernidade, tornaram escassos os recursos internos do indivíduo para lidar com fatores inconscientes. Ao reforçar a autoridade da Bíblia em detrimento de todo o aparato litúrgico contido no cristianismo tradicional e nas tradições pagãs, o Protestantismo se converteu em um instrumento técnico da consciência humana, relegando à sombra todas as outras funções psíquicas do indivíduo. Para Jung, a perda simbólica do Protestantismo deixou o indivíduo entregue a forças enraizadas do inconsciente que aguardam, latentes, sua liberação (JUNG, 2023, p. 85).


O protestantismo, que derrubou alguns dos muros cuidadosamente erigidos pela Igreja, não tardou a sentir os efeitos destruidores e cismáticos da revelação individual. Quando caiu a barreira dogmática e o rito perdeu a autoridade de sua eficácia, o homem precisou confrontar uma experiência interior sem o amparo e o guia de um dogma e de um culto, que são a quintessência incomparável da experiência religiosa tanto cristã, quanto pagã. O protestantismo perdeu, quanto ao essencial, todos os matizes mais sutis do cristianismo tradicional: a missa, a confissão, grande parte da liturgia e a função do sacerdote como representante hierárquico de Deus (JUNG, 2023, p. 33).

 

O protestante está entregue só a Deus. Para ele, não há confissões, absolvição ou qualquer possibilidade de cumprir uma obra de divina expiação. Tem de digerir sozinho seus pecados, sem a certeza da graça divina, que por falta de ritual adequado tornou-se-lhe inacessível. Isto explica o fato da consciência protestante haver despertado, convertendo-se em má consciência, com as desagradáveis propriedades de uma enfermidade latente que coloca o homem numa situação de mal-estar (JUNG, 2023, p.86).


       Apesar de traçar diferentes incômodos acerca das religiões dominantes, que se distanciam de uma atitude psicológica frente aos dogmas, Jung aponta o que considera um equívoco comum entre a Igreja Católica e o Protestantismo: a divindade exterior ao homem. “Aquilo que poderíamos chamar de cegueira sistemática resulta do preconceito que considera a divindade exterior ao homem. Embora tal preconceito não seja exclusivamente cristão, há certas religiões que dele não compartilham, em absoluto” (JUNG, 2023, p. 86).

            A mesma cegueira sistemática que considera a divindade distanciada do homem atinge também a relação Estado versus indivíduo. Ao considerar o sujeito ser social e conceber a relação entre Estado e religião, Jung critica o investimento racionalista contra a tradição religiosa e aponta que a função religiosa não desaparece com a crítica racionalista, ao contrário, se manifesta de forma distorcida como, por exemplo, no endeusamento do Estado ou de líderes políticos. Dentre as analogias do autor, estão as promessas religiosas de paraíso e as promessas terrestres de libertação da pobreza, ambas “inalcançáveis” e defendidas com o mesmo ardor.


Em minha opinião e sob o ponto de vista da verdade psicológica, qualquer teoria científica, por mais sutil que seja, tem, em si mesma, menos valor do que o dogma religioso, e isto pelo simples motivo de que uma teoria é forçosa e exclusivamente racional, ao passo que o dogma exprime, por meio de sua imagem, uma totalidade irracional. Este método garante-nos uma reprodução bem melhor de um fato tão irracional quanto o da existência psíquica (JUNG, 2023, p.81).


            Se da Europa Jung construiu críticas e considerações importantes acerca das religiões dominantes, interseccionando indivíduo, coletivo, religião e Estado, do ponto da América Latina os efeitos dessa relação abrangem outro tipo de complexidade. Ainda que o fundador da Psicologia Analítica tenha elaborado reflexões necessárias sobre o drama da colonização, os impactos deste processo no Brasil revelam-se profundos, destrutivos e atuantes. Na obra Aspectos do Drama Contemporâneos, por exemplo, o autor trata sobre a culpa coletiva do homem branco europeu em consequência da crueldade e carnificina empenhadas nas guerras e no colonialismo.

            Não é possível desconsiderar o missionarismo cristão como aparato principal do colonialismo – que seja por uma atitude equivocada e não mitológica - e a tragédia resultante da união de Estados e das religiões dominantes no projeto civilizatório. Aqui é preciso ressaltar o missionarismo salvacionista como outra cegueira dogmática propiciada a partir dessas religiões. Darci Ribeiro traz na obra O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, os ideais que moviam o processo civilizatório.


O motor dessa expansão era o processo civilizatório que deu nascimento a dois Estados nacionais: Portugal e Espanha, que acabavam de constituir-se, superando o fracionamento feudal que sucedera à decadência dos romanos. Não era assim, naturalmente, que eles se viam, os gestores dessa expansão. Eles se davam ao luxo de propor-se motivações mais nobres que as mercantis, definindo-se como expansores da cristandade católica sobre os povos existentes e por existir no além-mar. Pretendiam refazer o orbe em missão salvadora, cumprindo a tarefa suprema do homem branco, para isso destinado por Deus: juntar todos os homens numa só cristandade, lamentavelmente dividida em duas caras, a católica e a protestante. (RIBEIRO, 2013, p. 32)


            Nesse contexto de um país forjado em que a Igreja Católica era pilar da estrutura colonial e a heresia tipificada como crime, a conquista do Estado Laico na história constitucional do Brasil foi fundamental para garantir que o mito cristão não fosse atrelado a decisões políticas que definem como leis comportamentos do âmbito particular do indivíduo.

Foi somente na Constituição de 1891, durante o período republicano, quase 400 anos depois da invasão europeia, que se consolidou o Estado Laico no Brasil. O p. 2º de seu art. 11 proclamava que “é vedado aos Estados, como à União, estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos” (GANEM, 2013). A Constituição Federal de 1988, vigente na atualidade, reafirma o caráter Laico do Estado, conforme disposto em seu artigo 19:


É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público (BRASIL, 1988).


Nos estudos legislativos sobre a laicidade do Estado e os direitos fundamentais que integram a Constituição de 1988, Cassia Maria Senna Ganem aborda o equívoco conceitual que considera que as discussões religiosas devem manter-se distantes dos assuntos relacionados ao Estado, quando é justamente a consideração de posicionamentos filosóficos, inclusive religiosos, distintos que abarca a pluralidade social e a democracia.


Estado laico significa que o ordenamento jurídico de um país não pode se vincular a nenhum credo religioso, mas não significa que as diversas filosofias não possam se expressar sobre os assuntos postos à discussão na comunidade nacional. Ao contrário, justamente porque o Estado é laico, sem determinada religião oficial, as várias posições filosóficas, espirituais ou não, religiosas ou agnósticas, podem e devem ser consideradas, sob pena de ferimento aos princípios cardeais de nossa Constituição Federal que, no seu Preâmbulo, institui o Estado democrático brasileiro destinado a assegurar, entre outros, os valores de uma sociedade pluralista, fundada na harmonia social (GANEM, 2013, p. 6)


            Desfazer-se desse equívoco conceitual de Estado Laico não é tão desafiador quanto inserir no contexto de organização política do Estado brasileiro filosofias religiosas historicamente marginalizadas nesse cenário. Ao considerar a formação do Brasil e a tentativa de apagamento das cosmovisões dos povos originários e afrodiaspóricos na estruturação do Estado, como imaginar a inserção de diálogo sobre a espiritualidade desses que foram legalmente perseguidos, criminalizados e violentados? O avanço constitucional, tão necessário para a democracia, foi suficiente para garantir um espaço de construção que considerasse o apagamento desses saberes na estruturação do Estado?

            Em discurso proferido em plenário da Câmara dos Deputados durante a Assembleia Constituinte, em setembro de 1987, o líder indígena Ailton Krenak, denunciou o abismo entre as decisões dos destinos do Brasil, movidas pela ganância do poder econômico, e a consideração da existência dos povos indígenas. A conquista inédita de um capítulo na Constituição de 1988 sobre a proteção dos direitos dos povos indígenas, ocorreu sob forte pressão do movimento indígena, que naquele momento enfrentava catástrofes que atingiam diversos povos de forma intensificada por duas décadas, como os projetos de desenvolvimento dos governos militares para a Amazônia e a mineração nas terras yanomamis.


Os Srs. sabem, V. Exas. sabem que o povo indígena está muito distante de poder influenciar a maneira que estão sugerindo os destinos do Brasil. Pelo contrário. Somos talvez a parcela mais frágil nesse processo de luta de interesses que se tem manifestado extremamente brutal, extremamente desrespeitosa, extremamente aética. Eu espero não agredir com a minha manifestação o protocolo desta casa. Mas eu acredito que os senhores não poderão ficar omissos, os senhores não terão como ficar alheios a mais essa agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um povo indígena (KRENAK, 1987).


            Nessa trama de invisibilidade refletida na formação do Estado, as religiões cristãs dominantes com suas missões salvacionistas nunca se afastaram das instituições que administram a nação. O crescimento da extrema direita cristã conservadora na América Latina surge como uma resposta imperialista à proposta de fé promovida pela Teologia da Libertação (TL), que nos idos da década de 1970 com os avanços dos regimes ditatoriais, buscava promover uma prática de fé e luta social contra as injustiças aos pobres e oprimidos. A TL como “um corpo de textos produzidos a partir de 1970” (LÖWY, 2000, p. 56) tem como livro fundador “Teologia da Libertação. Perspectivas”, de Gustavo Gutiérrez, lançado em 1971[1], mas apontam-se como marcos gestacionais o Concílio Vaticano II (1962 - 1965) e a II Conferência Episcopal Latino-Americano realizada na Colômbia em Medellín em 1968. (NORONHA, 2012, p. 185, 186)


A desarticulação da Teologia da Libertação, para além dos limites da esquerda organizada, foi consequência de um projeto imperialista, que enxergou ali uma ameaça no campo subjetivo e que colocava em risco os avanços das políticas neoliberais na América Latina.


Nesse contexto, a aliança entre o pentecostalismo e o fundamentalismo religioso dá um novo contorno à experiência religiosa do nosso povo e passa a se chamar neopentecostalismo, que ganha um espaço maior entre as décadas de 1980 e 1990 e se expande com muita força dos anos 2000 em diante. O boom do neopentecostalismo fortaleceu o avanço do imperialismo e do neoliberalismo por meio das várias tendências da fé, nomeadamente a Teologia do Domínio e o Evangelho da Prosperidade. (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2022)   

     

            É necessário reconhecer a relevância da Teologia da Libertação para o avanço das pautas do campo progressista e isso será feito no próximo tópico deste trabalho. Quanto à estratégia de dominação fundamentalista no Brasil, fica evidente a crescente investida do projeto de poder na política institucional a partir de discursos de cunho moral e religiosos, pautados, por exemplo, nas eleições presidenciais de 2014 e no processo do golpe parlamentar sofrido pela então presidente Dilma Rousseff, em 2016.


Como exemplo desse movimento, temos as eleições presidenciais brasileiras de 2014, que já demonstraram que a comunicação política passou a ter, cada vez mais, uma roupagem religiosa com pautas da defesa da concepção patriarcal de família e da moral cristã. Anos depois, é importante rememorar a forma que a “religião” foi usada no pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, em 2016. Eduardo Cunha, o então presidente da Câmara, pentecostal da Assembleia de Deus e peça-chave no processo de impeachment, abre a sessão com a seguinte frase: “Está aberta a sessão. Sob a proteção de Deus” (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2022).


A força desse projeto foi retratada com a eleição do governo de Jair Bolsonaro, em 2022, sob o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”[2].

O traçado até aqui exposto pode evidenciar a fragilidade do Estado Laico, seja pelo forte apoio econômico no projeto de dominação fundamentalista, seja pela própria herança colonialista na formação do Brasil. Em uma conjuntura mais ampla, a oferta abundante de igrejas cristãs neopentecostais relaciona-se à crescente perseguição e violência contra terreiros de matriz africana nas comunidades, casas de rezo nos territórios indígenas e contra os praticantes dessas vertentes religiosas. Nesse contexto em que religiões cristãs atuam violentamente pela hegemonia, enquanto vertentes de matriz africana e afro-ameríndia lutam pela sobrevivência em seus territórios, como garantir uma igualdade de diálogo e de construções no campo político?

É válido ressaltar que grande parte das vertentes religiosas fora do catolicismo e do protestantismo não são missionárias e não empenham a função de catequizar e converter fiéis, de impor seus ritos e mitos próprios a toda humanidade. Desse modo, ao considerar a necessidade humana da experiência religiosa e a vasta disseminação de igrejas cristãs e de missionários, é possível conceber o grande número de adeptos que, como eleitores, determinam o avanço da direita conservadora cristã na política institucional.

            A partir da consideração de Jung de que, do ponto de vista da verdade psicológica, qualquer teoria científica tem menor valor do que o dogma religioso, pelo fato do dogma exprimir uma totalidade irracional que corresponde melhor à totalidade psíquica (JUNG, 2023, p.81), é possível considerar também que, em meio a um cenário de descrença política, grande parte dos eleitores votem religiosamente, ao invés de votarem politicamente.

            Nesse sentido, é possível imaginar que uma das fragilidades que acometa a bandeira do Estado Laico seja o apego a máxima de que “religião não se discute”, ao invés de fortalecer nos espaços de diálogos e construções políticas outras narrativas míticas, religiosas e espirituais pulsantes na pluralidade do território brasileiro, que propiciam uma ampliação simbólica e uma expansão para o contato com o sagrado.

            O primeiro tópico deste trabalho, disposto a seguir, abordará a Teologia da Libertação como corrente de pensamento cristã crítica ao capitalismo e defensora dos oprimidos, mas se debruçará também na investigação de militâncias não cristãs para examinar as possibilidades de outras narrativas religiosas no cenário político brasileiro. Em seguida, o segundo tópico aprofundará a investigação da atuação das lideranças indígenas no campo político como possibilidade de ampliação do sagrado e do fortalecimento do Estado Laico.

 

Reescrever o cristianismo, “des-hegemonizar” o Estado

 

            Rememorar as amarras do cristianismo na colonização e na formação do Estado brasileiro é tão necessário para relacionar psique, política e religião, quanto abordar outros esforços políticos de reescrever a essência do cristianismo na política do país. Na América Latina, a Teologia da Libertação surge na segunda metade do século XX como uma crítica da formação social hegemônica e capitalista da modernidade.

            Ao propor a Teologia da Libertação como um antecedente epistemológico e geo-histórico do que hoje se conhece como “perspectiva decolonial”, o pesquisador Luís Martínez Andrade aponta a corrente de pensamento como uma expressão teórica e intelectual que surgiu do “cristianismo da libertação” (LÖWY apud ANDRADE, 2018) inspirada nos movimentos populares e na luta dos oprimidos.


Não podemos compreender as mudanças sociopolíticas e culturais das últimas décadas na América Latina sem sublinhar o papel da teologia da libertação na criação de comunidades eclesiais de base, na formação de quadros, no engajamento nos movimentos sociais (o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra), a participação às lutas de libertação (Revolução Nicaraguense), etc. A teologia da libertação se tornou uma referência inevitável e uma fonte inesgotável para o pensamento crítico universal. Para além das convicções pessoais, ela é considerada, tanto por crentes quanto por militantes não crentes, como um discurso de emancipação, pois ela insiste no fato de que a divisão fundamental não é a oposição entre os crentes e ateus, mas entre opressores e oprimidos (ANDRADE, 2018, p.170).


            O autor referencia o teólogo e sacerdote dominicano considerado um dos fundadores da Teologia da Libertação, Gustavo Gutiérrez (1928-2024), para entender a corrente como via de compreensão das vozes desumanizadas pelo sistema, que reconhece a dívida com os “ausentes da história”.


A história do cristianismo, escreve ele, foi também escrito por uma mão branca, ocidental, masculina e burguesa. Assim, nos faz recuperar a memória dos “cristos flagelados das Índias”, seguindo a expressão que Bartolomeu de Las Casas usou para falar dos índios do continente americano e que se aplica a todos os pobres, vítimas das mazelas deste mundo. Esta memória é vivenciada nas expressões culturais, na religião popular, na resistência às imposições do aparelho eclesiástico. Memória de um Cristo presente em cada homem faminto, sedento, prisioneiro ou humilhado; presente nas raças menosprezadas e nas classes exploradas (GUTIÉRREZ, 1986, p. 216, apud ANDRADE, 2018, p,175).


            No Brasil, o teólogo e filósofo Leonardo Boff figura como percussor da Teologia da Libertação. No ano em que Gutiérrez publicava, no Peru, seu livro fundador Teologia da Libertação. Perspectivas (1971), Boff publicava em forma de artigos, depois publicados em livro, o Meu Jesus Libertador. O teólogo conta que à época, a revista de religiosas Grande Sinal foi escolhida para as publicações como estratégia de escape da repressão militar e que os autores não sabiam de suas respectivas publicações, mas estavam no “mesmo espírito”.

            Em balanço realizado por Boff em 2011, quando a Teologia da Libertação completou 40 anos, o teólogo reafirmou a origem da Teologia como instrumento de luta dos pobres, das classes oprimidas, dos povos indígenas, afrodiaspóricos, das mulheres, das religiões não cristãs, entre outros estigmatizados socialmente.


Desmascarou-se o sistema que subjaz a todas estas opressões, construído sobre o submetimento dos outros e da depredação da natureza. Daí a importância do diálogo que a Teologia da Libertação conduziu com a economia política capitalista. De grande relevância crítica foi a releitura da história da América Latina a partir das vítimas, desocultando a perversidade de um projeto de invasão coletivo no qual o colono ou o militar vinha de braço dado com o missionário. (...) Até hoje nem as potências outrora coloniais nem a Igreja institucional tiveram a honradez de reconhecer esse crime histórico, muito menos de fazer qualquer gesto de reparação (BOFF, 2011).


            Na prática, a Teologia da Libertação no Brasil promoveu verdadeiras transformações, sobretudo nas organizações sociais que surgem no campo e nas periferias como oposição ao sistema capitalista. Em pesquisa sobre a Influência da Teologia da Libertação no MST durante as décadas de 1970 e 1980 (2022), Mirian Borges da Silva aponta a corrente de pensamento e a organização social como perspectivas complementares.

O Movimento Sem Terra (MST), que marca a retomada da luta efetiva pela terra no Brasil (COLLETI apud SILVA, 2022, p. 29), surge em um período em que “juntamente com os movimentos sociais urbanos e rurais encontravam-se as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), como pequenos grupos de vizinhos que pertenciam a um mesmo bairro popular, favela, vila, ou zona rural, e que se reuniam regularmente para ler a Bíblia e discuti-la à luz de suas próprias existências” (SILVA, 2022, p.2). Segundo a autora, durante todo o desenvolvimento do MST, há também o acompanhamento das instâncias organizativas da TL, por representar o trabalhador sem-terra o homem pobre latino-americano, eleito pelos teólogos como protagonista bíblico e responsável pela própria libertação.


A influência do movimento político e social, que nasceu da periferia ao centro e formou a TdL, incluía além das CEBs e da CPT, intervenções pastorais de base popular (pastoral operária, pastoral camponesa, pastoral urbana), movimentos católicos leigos – Ação Católica (AC), Juventude Universitária Católica (JUC), Juventude Operária Católica (JOC) e os movimentos de ação de base, como o Movimento de Educação de Base (MEB). Toda essa movimentação teve consequências inclusive na estrutura institucional da Igreja, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), por exemplo, tornou-se a voz nacional da Igreja brasileira nos anos de 1970, divulgando declarações críticas contra as violações dos direitos humanos e a injustiça social e econômica (Serbin 2001, 321). Em 14 de fevereiro de 1980, a Igreja aprovou pela 18.ª Assembleia da CNBB, um documento que expressava o seu apoio às comunidades indígenas e aos trabalhadores rurais, e denunciava também a concentração de terra pautada no argumento bíblico de que “a terra era um dom de Deus a todo o homem” (Coelho 2012, 179).  Os argumentos bíblicos e as motivações levantadas pela fé estavam na base do MST, na mesma medida em que a luta do movimento também estava na base da TdL(...)


Dessa forma, o papel das CEBs, da CPT, dos grupos de oração, formação e pesquisa, era exatamente auxiliar os trabalhadores em seus processos de conscientização e mobilização (Moreira 2006, 126). Para tal, essas organizações adotavam um método construído pela TdL para conhecer/analisar  a  realidade  e  planejar  suas ações a serem feitas valorizando as lutas populares; o método utilizado nas reuniões das CEBs para o conhecimento da realidade e o planejamento das suas ações envolvia três momentos: ver – observar a realidade, levantar dados sobre a  situação  do  bairro,  ou  a  sociedade  como  um todo; julgar – a partir dos dados levantados, fazer uma  crítica  com  ajuda  da  bíblia  e  das  ciências sociais; agir – planejar e executar ações coletivas que poderiam alterar a realidade (Faber, Goulart, e Santos 2009, 204) (SILVA, 2022, p.3)


            Em relato auto etnográfico sobre sua trajetória como intelectual indígena, O intelectual indígena nascido da Teologia da Libertação (2022), Florêncio Almeida Vaz Filho, indica a TL como instrumento fundamental para seu autorreconhecimento enquanto indígena, através do trabalho de resgate cultural das dioceses no campo, que possibilitaram a sua reafirmação identitária.


O alcance da atuação do MEB e das dioceses e prelazias na organização comunitária das populações ribeirinhas na Amazônia foi amplo e profundo, contribuindo na promoção de projetos emancipatórios e ajudando a congregar “aquelas unidades sociais e políticas em fluxos horizontais e verticais, agrupando e interconectando ribeirinhos para viverem entre comunidades” (Neves, 2008: 75)6. Este destaque ao potencial organizativo e libertador dos ribeirinhos está na raiz da reconfiguração étnica de indígenas na região, a partir dos anos ‘80 e ‘90. (FILHO, 2018, p. 39,40)


            No movimento oposto à hegemonia imposta pela igreja até então, as lideranças religiosas inspiradas na TL estimulavam as retomadas das tradições culturais nas comunidades, inclusive as manifestações religiosas.


Enquanto isso, sacerdotes e religiosos, influenciados pela TL, visitavam as comunidades, estimulando os moradores a reavivar as suas tradições culturais de origem indígena, que haviam sido combatidas pela própria igreja até meados do século XX. Eles incentivavam a retomada da celebração das festas de santo, com mastros e cantorias, como faziam antes da proibição. Muitas comunidades voltaram a fazer suas festas no estilo antigo. Era um processo muito similar ao que ocorreu no Nordeste na mesma época, quando agentes da igreja progressista jogaram papel decisivo nas etnogêneses indígenas, ao passar da opção pelo “pobre” à defesa e “resgate da cultura” (ARRUTTI, 2006 apud FILHO, 2018, p. 40, 41)


            Apesar da defesa do engajamento da Igreja na sociedade ser parte estrutural da Teologia da Libertação, Boff afirmou, em entrevista à BBC realizada em maio de 2007, que a corrente ganhou curso próprio e não depende mais da Igreja. O teólogo citou à época que “vários ministros do governo Lula que são filhos da Teologia da Libertação. O próprio Lula diz: eu, como cristão, sou da igreja da Libertação. Há dois ou três governadores que são filhos da Teologia da Libertação” (BOFF, 2007).

            Por fim, é importante citar a influência da teoria junguiana no pensamento do teólogo. Entre 1970 e 1985, Leonardo Boff fez parte do conselho editorial da editora Vozes e coordenou a tradução da obra completa de Carl Gustav Jung, o que o tornou, segundo o próprio teólogo, um dos seus principais interlocutores intelectuais. Sobre o psiquiatra suíço, Boff afirma:

Poucos estudiosos da alma humana deram mais importância à espiritualidade do que ele. Via na espiritualidade uma exigência fundamental e arquetípica da psiqué na escalada rumo à plena individuação. A imago Dei ou o arquétipo Deus ocupa o centro do Self: aquela Energia poderosa que atrai a si todos os arquétipos e os ordena ao seu redor como o sol o faz com os planetas. Sem a integração deste arquétipo axial, o ser humano fica manco e míope e com uma incompletude abissal (BOFF, 2009).

            De fato, a corrente de pensamento marca uma trajetória importante na reivindicação da releitura da história da América Latina pelo viés das vítimas da colonização e ainda hoje assume papel fundamental nos diálogos e construções do Estado Laico, mas a leitura mítica da Teologia da Libertação segue centrada no cristianismo, ou seja, a força arquetípica do Deus cristão é a mobilizadora das transformações.

          O forte apelo salvacionista do cristianismo pode soar contraditório em um país que, para expressar-se religiosamente por vertentes religiosas não cristãs, torna-se necessário resistir ao missionarismo. Como se para vivenciar seus próprios ritos seja necessário negar a salvação que pretende a todos cristãos. O legado intelectual da filósofa, antropóloga e ativista do movimento negro, Lelia Gonzalez, destaca o quão prejudicial foi a investida europeia no percurso dos saberes africanos e afro-diaspóricos na “Améfrica Ladina”.


...sabemos o quanto a violência do racismo e de suas práticas nos despojou do nosso legado histórico, da nossa dignidade, da nossa história e da nossa contribuição para o avanço da humanidade nos níveis filosófico, científico, artístico e religioso; o quanto a história dos povos africanos sofreu uma mudança brutal com a violência investida europeia, que não cessou de subdesenvolver a África; e como o tráfico negreiro trouxe milhões de africanos para o Novo Mundo (GONZALEZ, 2020. p.136).


Hoje como ontem, a visão eurocêntrica e racista de práticas religiosas pertencentes a culturas não europeias só faz confirmar o quanto a ideologia do supremacismo branco se perpetua, ela sim, como terrorismo cultural imperialista. (GONZALEZ, 2020, p.157)


Convidada pela então recém-eleita deputada federal Benedita da Silva, a autora participou, em abril de 1987, da subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias do Congresso Nacional, durante a Assembleia Constituinte, denunciando o mito da democracia racial e apresentando propostas de democracia que constituem as instituições negras, entre elas, a umbanda.


O nosso projeto de nação está presente em nossas instituições negras, está presente, por exemplo, em uma umbanda que recebe de braços abertos católicos, espíritas, budistas etc. O nosso projeto é efetivamente de democracia, de sociedade justa, com todos os segmentos que a acompanham e igualitária com relação a todos os segmentos (GONZALEZ, 2020, p.252).


            Ao trazer a umbanda como instituição negra que recebe católicos, espíritas, budistas, etc, Gonzalez evidencia a não intencionalidade hegemônica da religião. Tanto o discurso de Ailton Krenak, quanto o de Lélia Gonzalez, durante Assembleia Constituinte, no Congresso Nacional, tratam sobre a necessidade de serem ouvidos, vistos, respeitados por um sistema que historicamente tenta exterminar povos negros e indígenas.

A ideia de nação foi tema de uma mesa na programação em homenagem ao Dia Internacional da Língua Portuguesa, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, em maio de 2022, que teve Ailton Krenak como convidado. Na abertura do evento, foi exibido um vídeo do xamã Davi Kopenawa que, ao escolher falar em seu próprio idioma yanomami, trouxe a compreensão yanomami sobre o significado da terra e denunciou a violência colonial intrínseca à língua portuguesa. A transcrição da fala neste trabalho foi feita a partir da legenda do vídeo.


...os políticos nos guiam por elas. A língua portuguesa é importante pros nossos filhos pois mesmo aprendendo jamais nos tornaremos brancos. Aprendemos o português para podermos defender a nossa terra-floresta. Para poder defender o direito a nossa vida, o direito a termos acesso a nossas caças, a cultivar a terra, matar nossa sede, plantar nossas roças. Por causa do local em que vivemos e para poder protegê-lo aprendemos a língua portuguesa (KOPENAWA, 2022).


Sobre a ideia de nação, o xamã e ativista político do povo yanomami afirma que “O país, a terra, floresta, isso tudo é chamado de Pátria por vocês brancos. Para nós é apenas a grande mãe terra que surgiu por primeiro, a qual nos abriga (...) Esta terra que chamam Brasil, eu não chamo Brasil”.

A partir da sabedoria yanomami exposta por Kopenawa, é possível pensar a representatividade indígena no campo político brasileiro como mais uma estratégia de resistência e de sobrevivência. Ao levarem para a política compreensões de mundo historicamente invisibilizadas nesse cenário, representantes dos povos indígenas dão luz a narrativas míticas e experiências espirituais que não passam pelo cristianismo. O próximo tópico permeará sobre as possibilidades da cosmovisão indígena no campo político contribuir para o fortalecimento do Estado Laico e, como consequência, da defesa de bandeiras que constituem a espiritualidade indígena.

 

Oncificar a psiquè: fortalecer os simbolismos indígenas como abertura à experiência com o sagrado originário no campo político brasileiro

 

            Previamente à abordagem das perspectivas indígenas em diálogo com religiosidade neste trabalho, torna-se necessário retornar ao emprego junguiano do termo religião, definindo-a como experiência do numinoso não necessariamente vinculada a experiência dogmática e, sobretudo, destacar que em uma perspectiva da cosmovisão indígena, a experiência com o sagrado não é de ordem do extraordinário, mas interligada às demais funções do indivíduo.

Ao ser questionado sobre sua religião em entrevista concedida para a revista Teoria e Debate em 1989, Ailton Krenak frisou a diferença de sua tradição das tradições cristãs, por não precisar ir à missa ou seguir determinadas normas e condutas para relacionar-se com o sagrado.


Eu me relaciono com o meu criador; me relaciono com a natureza e com os fundamentos da tradição do meu povo (...) Ela existe em cada uma das células do meu corpo. Ela existe em cada um dos pequenos, no ar que eu respiro, naquelas plantinhas que estão ali no quintal, na chuva que cai, nos raios de sol que atravessam todos esses concretos e cimentos e passam por este buraquinho da janela aqui. E ela bate com a mesma força e intensidade com que faz uma cachoeira lá no meio do Amazonas ou uma geleira lá no Alaska. Porque a natureza é a vida mesmo. Não há natureza apenas num parque, num jardim (KRENAK, 1989).


Dentro dessa diversidade de saberes, Ailton Krenak aponta memórias que possuem confluências determinantes para o que o autor define como cosmovisão indígena.


As diferentes narrativas indígenas sobre a origem da vida e nossa transformação aqui na Terra são memórias de quando éramos, por exemplo, peixes. Porque tem gente que era peixe, tem gente que era árvore antes de se imaginar humano. Todos nós já fomos outra coisa antes de sermos pessoas – essa mensagem atravessa narrativas de nossos parentes Ainu, que vivem no norte do Japão e na Rússia, dos Guarani, dos Yanomami, dos parentes que vivem no Canadá e nos Estados Unidos. Quem sabe até os mesopotâmios, aquela gente muito antiga, tivessem histórias dessa natureza? Os ameríndios e todos os povos que têm memória ancestral carregam lembranças de antes de serem configurados humanos (KRENAK, 2020, p.51-52).


            A mitologia yanomami lançada no livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, resulta das revelações do xamã Davi Kopenawa ao antropólogo francês Bruce Albert sobre a cosmologia do povo yanomami. O livro, que tem como alvo a defesa territorial e cultural dos yanomami contra o avanço do garimpo e a destruição causada pelo homem branco, evidencia a forte relação espiritual que vincula os yanomami a todos os outros seres da floresta.

Os xapiri (...) Suas imagens são de todos os habitantes da floresta que descem do peito do céu, um depois do outro, com seus filhotes. As araras-vermelhas, amarelas e azuis, os tucanos, papagaios, jacamins, mutuns, cujubins, gaviões herama, wakoa e kopari, morcegos e urubus são muitos na floresta, não é? E os jabutis, tatus, antas, veados, jaguatiricas, onças-pintadas, suçuaranas, cutias, queixadas, macacos-aranha e guaribas, preguiças e tamanduás? E os pequenos peixes dos rios, poraquês, piranhas, peies pintados kurito e arraias yamara aka, então?


Todos os seres da floresta possuem imagem utupë. São essas imagens que os xamãs fazem descer. São elas que, ao se tornarem xapiri, executam suas danças de apresentação para eles (ALBERT; KOPENAWA, 2021, p.116).

 

Embora as imagens dos ancestrais animais sejam de fato muito numerosas na floresta, não são as únicas que vivem nela. Os xamãs também fazem descer como xapiri as imagens de todos os seus outros habitantes: das árvores, das folhas e dos cipós, e ainda dos méis, da terra, das pedras, das águas, das corredeiras, do vento ou da chuva (ALBERT; KOPENAWA, 2021, p. 124).


Essa vinculação visceral e sagrada com a natureza é a base que sustenta a luta pela preservação ambiental e que lançou, através do movimento indígena nacional, candidaturas indígenas em diversas partes do Brasil em 2022, que culminaram na eleição de representantes dos povos originários nos poderes legislativo e, posteriormente, executivo. Entre as representantes eleitas, a deputada federal Célia Xakriabá e Sônia Guajajara, eleita deputada e nomeada ministra dos Povos Indígenas em seguida, destacam-se por trazerem em seus pronunciamentos, vestimentas, pinturas e acessórios elementos que englobam as cosmologias indígenas. 

            As redes sociais da parlamentar e da ministra têm sido importantes instrumentos políticos de divulgação de suas pautas e da cultura indígena. Em publicação na rede social Instagram, no dia 30 de novembro de 2024, a deputada Célia Xakriabá postou um vídeo em que realiza pintura em seu próprio rosto reproduzindo a pele de uma onça pintada. Enquanto pinta o rosto relacionando a argila da tinta com a terra, Célia explica que todos os povos indígenas têm animais e elementos da natureza em seus mitos de criação e que “a origem de criação do Xakriabá é com a onça”. “Esse é o meu processo de pintura, essa é a história do meu povo com a onça, e por isso eu digo todas as vezes que viemos para ONCIFICAR o congresso e a política” (XAKRIABÁ, 2024, INSTAGRAM).

            No Artigo Aspectos da Religiosidade do Povo Indígena Xakriabá, o cientista social e da religião, Heiberle Hirsgberg Horacio, aborda sobre o ritual Toré, em que a encantada onça se manifesta:


Atualmente, esse Toré possui duas dimensões: uma externa ou pública, e a outra secreta. Sobre a dimensão pública, ela “passa a ser representada pela performance, que reúne dança e cantigas de evocação à onça cabocla” (OLIVEIRA, 2008, p.67), e surge da necessidade da existência de representações públicas das práticas rituais dos Xakriabá. (HORACIO, 2018, p. 34)


A onça cabocla, que é considerada como “avó de todos” os Xakriabá, potencializava a força dos chefes que possuíam ligação com ela. Sobre ela, conta-se que era uma índia que se transformou em onça objetivando conseguir carne para os índios, e que, ao retornar da caçada com a boca suja de sangue, não foi reconhecida pela índia responsável por reverter o encantamento, por isso, permaneceu onça e vive no território Xakriabá (HORACIO, 2018, p. 35-36).


            Estabelecendo a conexão de Brasília (DF) - centro das decisões do campo político, com os territórios, a ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara, fez uma postagem em suas redes sociais no Dia Internacional da Mãe Terra, 22 de abril de 2024, em que mostra os plantios na sua “roça”, no Maranhão, e fala sobre o vínculo entre os encantados, as árvores, os indígenas e a Mãe Terra:


Pisar o pé na terra, mexer com as plantas e saber que enquanto achamos que somos nós que cuidamos da natureza, na verdade é ela que está cuidando de nós.Nossos territórios são como nossos corpos, moldados pela ancestralidade que nos repassou o conhecimento. Corpo e território se entrelaçam, unidos pela força dos encantados, onde cada árvore, assim como cada indígena, tem um propósito e uma conexão essencial.Como costumo dizer, a luta pela Mãe Terra é a mãe de todas as lutas porque sem ela não há vida! (GUAJAJARA, 2024).


            A atuação indígena no campo político brasileiro se fortalece em um momento de emergência climática mundial, em que é inevitável sentir na matéria a elevação da temperatura e as catástrofes provocadas por enchentes, ocasionadas pela ação destrutiva do humano contra o meio ambiente.

Embora Jesus ainda não tenha voltado, como prometem os versos bíblicos, a Mãe Terra tem urgido para sair da sombra da destruição para que a humanidade e todos os seres sejam salvos. Nesse sentido, tornar acessível por meio do campo político o contato com a espiritualidade indígena fornece a abertura de um caminho não apenas de fortalecimento do Estado Laico, mas também de possibilidade de contato com um sagrado pertencente ao território brasileiro e que apresenta soluções para a maior emergência da atualidade.


O homem não consegue extirpar de todo suas convicções religiosas, porque a atividade religiosa repousa numa tendência instintiva e pertence às funções específicas do homem. É possível retirar-lhe os deuses, mas somente para lhe oferecer outros. (JUNG, 2011, v. 10/1, par. 544).


            Na democracia, como na diversidade das cosmovisões indígenas, inúmeros deuses podem coexistir.

 

Conclusão

            Ao traçar uma leitura histórica do fenômeno religioso na formação do Brasil, é possível concluir que apesar dos avanços constitucionais e do estabelecimento do Estado Laico, ainda há profunda desigualdade de filosofias que contribuem para a compreensão de mundo nas construções do campo político brasileiro.

Nesse sentido, a presença indígena no parlamento e no poder executivo pode ser vista como um convite à reflexão sobre relações com o sagrado que não necessariamente passam pelas religiões dominantes cristãs, um aprendizado sobre modos e compreensões de mundo invisibilizados. 

O entendimento da experiência religiosa como função psíquica proposta por Carl Gustav Jung é uma chave poderosa que abre portas para a reflexão acerca das mobilizações que o fenômeno religioso provoca, não apenas individualmente, mas coletivamente, desde os primórdios. O fenômeno religioso traçou caminhos da própria formação do Brasil e, ainda na atualidade, determina diretrizes políticas ao consolidar representantes cristãos nas decisões no Congresso Nacional.

            A partir da relação entre religião, política e a laicidade do Estado, este trabalho sugere o fortalecimento de narrativas marginalizadas no campo político brasileiro como uma possibilidade de fortalecimento do Estado Laico. A presença indígena nesse campo promove o acesso a outras formas de relação com o sagrado, que passam, inclusive, pela pauta urgente de proteção do meio ambiente.



REFERÊNCIAS


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GUAJAJARA, S. “Neste Dia Internacional da Mãe Terra, me lembrei desse vídeo na minha roça lá no Maranhão, que é um dos lugares em que mais gosto de estar”. [Instagram]. 22 abr. 2024. Disponível em: https://www.instagram.com/guajajarasonia/reel/C6EIKDRO5t7/ . Acesso em: 23 jan. 2025.

 

HORACIO, H. H. Aspectos da religiosidade do povo indígena Xakriabá. Revista Mundaú, n.4, p. 30-51, 2018.

 

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XAKRIABÁ, C. “Muitas pessoas têm curiosidade sobre como eu faço minhas pinturas, principalmente esta, onde a onça que existe em mim fica ainda mais explícita”. [Instagram]. 30 nov. 2024. Disponível em: https://www.instagram.com/p/DC_m8yCOg_1/ . Acesso em: 23 jan. 2025

 

 

 




1 Comment


Lelê Teles
Lelê Teles
há 5 dias

belo artigo, sobretudo por sua abordagem decolonial. o diabo é que como o estado laico levou quase 400 anos para se estabelecer no Brasil, como diz o artigo, o processo civilizatório que nos formata, oriundo da sanha expansionista dos reis católicos, é urbano e antirrural. é por isso que a arquitetura é um símbolo tão importante para a igreja quanto a cruz. mas a esperança das novas cosmovisões engendradas no poder, com a ascensão dos povos originários aos espaços de decisão, pode ser o contraponto que faltava para salvar o que nos resta. e o que a gente mais precisa hoje é de ação, reação e esperança, elementos que parecem constituir um dos pilares deste artigo necessário.

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